Debate: Construir ecossistemas que fomentem a complementaridade

Inflação, instabilidade geopolítica e degradação dos serviços públicos. São estes os três grandes factores que têm vindo a impactar o dia-a-dia dos consumidores e das empresas, e o sector segurador não consegue sair intocado. Ainda assim, de uma maneira geral, 2023 foi um ano bom para o sector segurador, especialmente se nos focarmos no ramo não vida.

Nos produtos financeiros as seguradoras ainda não conseguiram aquilo que pretendem, não estando a taxa de poupança onde seria desejável. No entanto, no final de 2023, já se começou a sentir um crescimento na procura por estes produtos com a descida das taxas de juro. «Quando há mexidas nas taxas de juro sente-se logo o efeito nestes produtos», escuta-se à mesa de pequeno-almoço do Hotel Vila Galé Ópera, onde se realizou o encontro trimestral sectorial promovido pela Marketeer. «Há produtos lançados no final de 2023 que tiveram alguma procura e continuam a ter neste arranque de ano.»

Fazendo um balanço do ano que terminou constata-se que há áreas específicas que estão a correr muito bem, como é o caso da dos animais de estimação ou, de uma forma mais abrangente, a saúde animal.

Na saúde humana, 2023 viu crescer o aumento da sinistralidade com efeitos visíveis em frequência e custo, uma tendência que se prevê que se mantenha em 2024. «As pessoas hoje vão ao privado para coisas mínimas», escuta-se entre os participantes presentes neste pequeno-almoço: Afonso Barata (Mudum Seguros), Inês Simões (Ageas), João Gama (Mapfre), José Villa de Freitas (Fidelidade), Maria Luís Rodrigues (Liberty Seguros) e Rita Leotte (Mudum Seguros).

Um significativo aumento de custos registou-se também no negócio automóvel, derivado do aumento do custo de peças e da escassez de veículos de substituição. No entanto, aqui, a frequência da sinistralidade não sofreu incremento.

Um trajecto diferente tem sido o registado pela área de multirriscos onde se nota, cada vez mais, a ocorrência de eventos com alguma intensidade, sentindo-se, portanto, o aumento da sinistralidade a nível particular. No caso das empresas acontece também com inundações e com algumas situações de explosões. «No entanto, não sentimos ainda por parte dos clientes uma grande preocupação ou procura de seguros por causa disto, em específico», ainda que na componente dos custos já se comece a sentir. Uma tendência que à mesa se diz ser justificada, em parte, por o País ser relativamente paternalista relativamente a estes eventos. E se é verdade que, como dizem, há mais de 20 anos que se fala em criar um fundo para catástrofes como há em Espanha, por exemplo, também o é que quando há situações, como os grandes incêndios de há três ou quatro anos, acaba-se por, muitas vezes, ter o Estado a ajudar as pessoas. «E a necessidade acaba por não se criar na componente dos seguros porque as pessoas sentem que têm o Estado a protegê-las.»

Uma questão, de resto, que se intersecta com a da literacia financeira, que é outro desafio, até se nos lembrarmos que, recentemente, se tentou introduzir o tema nos currículos escolares, tendo sido chumbado no Parlamento.

OLHAR PARA A FRENTE

Entre os convivas acredita-se que a literacia de saúde é uma boa forma de despistar questões que levavam as pessoas às urgências dos hospitais, um papel que no passado estava nos centros de saúde, ajudando a reduzir o caos actual das urgências. Com a medicina online e com as novas valências – como a IA, a eficiência e a qualidade dos dados, que faz com que as pessoas não se inibam de fazer uma videoconsulta por custos da transmissão dos dados –, aliadas à comodidade de acesso, as seguradoras conseguem ajudar a que só vá a uma urgência quem efectivamente precisa de lá ir. Funcionalidades que, neste momento, estão já disponíveis também para os seguros dos animais de companhia, minimizando os custos de deslocação.

Mas sendo a população portuguesa envelhecida, tem de haver um foco na literacia tecnológica. Ou seja, os mais velhos têm de ser ajudados por alguém. Mas também as empresas de telecomunicações têm feito uma boa abordagem a este tema a par da evolução tecnológica que é, hoje, muito mais simples de usar.

Outro caminho que começou a ser feito e que será para continuar este ano é tentar que os seguros sejam mais acessíveis e inclusivos a outro tipo de segmentos de rendimentos mais baixos. Ou seja, o lançamento de versões light dos seguros que já existiam. «É uma alternativa à resposta que hoje não têm no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se conseguirmos alargar o acesso a pessoas que hoje não equacionam ainda ter seguro de saúde, veremos a base de clientes aumentar», assegura- se entre os profissionais da área.

E não esqueçamos que o seguro de saúde tem sido um benefício que as empresas têm dado aos seus colaboradores ajudando a retê-los nas empresas. Mesmo as empresas mais pequenas estão a recorrer ao seguro como complemento salarial, porque é uma das coisas que as pessoas mais valorizam, conforme fica claro em entrevistas de emprego. E mesmo que seja dos seguros mais simples, mesmo que seja só o acesso a uma rede de prestadores, é melhor isso do que o nada que têm com o SNS.

Uma abordagem que tem sido feita, para além dos seguros, tem a ver com o pensar na saúde a 360º, ou seja, bem-estar, nutrição e uma série de outras dimensões começarem a fazer parte do ecossistema global. Entre os participantes na conversa acredita-se que é algo que vai continuar a evoluir não só na saúde, mas também noutras áreas de negócio, como no que respeita à casa e em tudo o que tenha a ver com ela (eficiência na habitação, por exemplo). No fundo tentar construir ecossistemas que levem para o universo dos seguros uma complementaridade grande e mais abrangente a nível de proposta de valor, muito centrada na pessoa. «Pensar na pessoa e nas suas necessidades à volta daquele universo (seja saúde ou casa) e pensar como podemos estar em diferentes pontos de contacto e não apenas no momento do seguro. Essa é uma mais-valia», escuta-se. Assim como os serviços e as necessidades associados à longevidade, já que a população está cada vez mais envelhecida, sem esquecer que são pessoas que têm cada vez maiores dificuldades de se deslocar.

O que será de esperar é que por questões económicas haja uma não renovação de seguros não obrigatórios. No entanto, devido ao estado da saúde pública em Portugal, os seguros de saúde deverão continuar a sua trajectória ascendente. Já os seguros relacionados com a habitação poderão não ter igual fado já que, sendo grande parte do mercado habitações próprias Maria Luís Rodrigues (Liberty Seguros), José Villa de Freitas (Fidelidade) e Rita Leotte (Mudum Seguros) totalmente pagas, o seguro não é imperativo (só o é enquanto existe o crédito à habitação).

E apesar da transição que se está a fazer no parque automóvel português, passando de motores a combustão para eléctricos, os consumidores não deverão contar com diminuições de preços nos seus seguros só por esse facto. Porque apesar de à mesa se reconhecer que, empiricamente, os eléctricos terão menos acidentes, pelo perfil do condutor (não passará pela cabeça de uma pessoa com carro eléctrico ter o telefone na mão porque funciona com o computador de bordo), pela segurança do veículo, pelas indicações de prevenção que dá, a verdade é que ainda não há dados. Algo que a curto prazo começará a existir. E aqui a IA terá um papel de relevo ao conseguir estabelecer padrões. A forma como se vai conduzir o carro vai mudar e empiricamente o risco reduziria, mas há outros aspectos a ter em conta, como o facto de haver muitos mais factores de distracção no carro… À mesa acredita-se que, apesar de a frequência de acidentes poder baixar, os custos de reparação desses veículos poderão ser mais elevados.

CHEGAR ÀS PESSOAS

No que respeita à comunicação e marketing, os profissionais crêem que vai ter de se aprofundar o caminho para chegar às pessoas. E escuta-se entre os pares: «Na maior parte das vezes na comunicação estamos muito centrados em nós, na empresa e naquilo que queremos vender e transmitir.» Mas há uma necessidade (e começa-se a sentir um esforço) de pensar a comunicação na lógica da pessoa que está a ouvir em casa. Um caminho que está já a ser percorrido por algumas comunicações, que se focam em transformar as narrativas, personalizando-as mais, tornando-as mais humanas e menos centradas naquilo que são os objectivos comerciais. Mas este é um desafio para o sector como um todo, que terá de deixar de se focar nos produtos e no desconto, trabalhando mais o lado da literacia financeira. «É importante trazer para a mesa, cada vez mais, histórias reais e a realidade com que as pessoas se identificam.» O sector tem-no feito nos últimos anos, mas pode fazer mais para chegar às pessoas de forma diferente – veja-se o caso de campanhas em que os animais de estimação falam das suas necessidades –, sobretudo num período em que estas estão instáveis, inseguras e com muita incerteza. É levar a óptica do customer centric para o ponto de vista da comunicação. «Podemos conquistar um território que pode ser uma oportunidade para o sector.»

E não esquecer que esta comunicação one2one deve acompanhar o ciclo de vida dos clientes e que na relação com eles há muito espaço para trabalhar. E aí a IA e os dados do cliente podem fazer a diferença na personalização da comunicação.

CONTENÇÃO NOS EVENTOS

A proximidade com os referidos clientes em 2024 passará também por eventos, mas para já é certo que a palavra que vai imperar aqui é contenção. À mesa há quem lembre que há um aproveitamento enorme de parceiros de eventos relacionados com a inflação. Valores que subiram três a quatro vezes acima do valor da inflação. «É incomportável. Se as empresas continuarem a fazer os eventos e a pagar estes valores, isto vai explodir », alerta-se. Daí o equilíbrio que as empresas seguradoras precisam de fazer entre os eventos físicos e os de formato híbrido. E este é um tema que tem pesado nas decisões.

Tradicionalmente mais focadas em preço, as directas não têm, actualmente, uma diferença de preços significativa face às seguradoras, “ditas”, tradicionais ou de serviço completo. E apesar de terem começado com foco em seguros automóvel, têm hoje uma oferta muito diversificada. Além de que as seguradoras completas vendem directo também.

À mesa há quem sublinhe que as seguradoras directas que estão sob domínio das completas são usadas para testar e explorar conceitos. A questão é que depois as completas (que as dominam) não as deixam crescer. «Noutros países há sucesso em seguradoras directas», lembram. O que continua a haver é dificuldade do consumidor em tomar uma decisão sem estar aconselhado. A IA poderá vir a ajudar nisto, ligando ao tema da literacia financeira. «Se isto se resolver há espaço para a venda directa. Se é uma seguradora directa ou uma seguradora completa a vender de forma directa são outras equações.»

E se é indubitável que no seguro automóvel as directas ainda têm o seu peso, também o é que este seguro vai evoluir para algo muito mais abrangente, desde os seguros que envolvam toda a mobilidade aos que são pagos ao quilómetro.

SEGUROS DINÂMICOS

E apesar de ainda não ser uma realidade em Portugal, lembra um dos participantes, a indústria automóvel começa a incorporar os seguros dentro da própria produção dos carros. «Há experiências que já estão a ser feitas de ofertas de uma seguradora em específico para uma marca específica do sector automóvel. O veículo já sai com seguro. Como se financia o seguro, se é um pagamento anual ou se está no preço do carro ainda está a ser definido e poderá haver vários modelos.» Além disso, de futuro poder-se-á evoluir para seguros dinâmicos em função da condução, já que cada vez mais se tem acesso aos dados e isso será fundamental para o cálculo de risco. «É um tema que pode ser disruptivo para nós.»

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Seguros”, publicado na edição de fevereiro (n.º 331) da Marketeer.

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