Fazer por merecer

“É incrível como todos achamos que merecemos algo. As pessoas acham mesmo que estão por vir aí coisas que lhes são destinadas, que nunca nada realmente mau lhes vai acontecer um dia. Por alguma razão todos pensamos que um acidente é algo que nunca se devia passar connosco. No outro dia, estava num restaurante e vi um empregado entornar sem querer um prato no casaco de um cliente. Ele teve aquela reacção que todos temos agora, quando alguém entorna algo sobre ti:

– Wow! o que significa isto?!
O homem ficou tão ofendido!
– Sabes quem sou eu?
– Sim, és o palerma que estava aí sentado quando isto aconteceu. E então?
Talvez um dia sejas atropelado por um carro. Ninguém se importa. Tu não mereces nada neste mundo desde o momento em que nasceste, tens que perceber isso. Desde o momento em que a última parte do teu corpo sai da vagina da tua mãe. Desde o momento em que o teu pé deixa de tocar na vagina da tua mãe pela última vez (essa será a última vez que isso acontece, espero, a não ser que um dia venhas a dar um pontapé na vagina da tua mãe, o que não devias fazer nunca, e isto é só a minha opinião, mas não devias fazê-lo. Há poucos motivos legítimos para pontapeares a tua mãe na vagina. São sete, na verdade. Mas não te vou dizer quais são, até porque depois já sei o que vais fazer.)”

Este texto não é meu. Nunca seria capaz de escrever quatro vezes “vagina da tua mãe” (cinco, com esta) numa crónica sobre publicidade para a Marketeer. O excerto é tirado de um episódio de “Louie”, em que Louis C.K. faz este monólogo no Comedy Cellar, o seu clube habitual de stand-up. É uma reflexão triste e implacável sobre a existência humana, e ocorre-me que ela poderia ser aplicada às marcas. Qualquer marca nasce a pensar que merece algo, quando na verdade ela é só a marca que estava aí sentada quando acontece alguma coisa, seja a preferência ou a rejeição do consumidor. Nem que seja estatisticamente, as marcas, tal como as pessoas, nascem com uma forte tendência para a invisibilidade, e muitas das coisas boas que vão ter com elas não acontecem porque sim. Contra todas as probabilidades, as marcas deixam de ser invisíveis porque se tornam memoráveis, e passam a ter a preferência das pessoas porque fazem algo por merecê-la.

Assim se passa este ano com a Loteria de Navidad espanhola. É uma marca que, ao contrário da maioria, tem tendência para ser visível graças a um nível de investimento de vários zeros em meios e produção. A diferença é que este ano ela escolheu merecer a preferência das pessoas, além da visibilidade que sempre lhe chega com os euros. O conceito é “El mayor premio es compartirlo”, o que é logo um bom ponto de partida, a campanha é da Leo Burnett Madrid e vive de histórias filmadas com realismo e sensibilidade por Santiago Zannou, sobre a emoção de partilhar com alguém um bilhete de Lotaria no Natal. A maior de todas as histórias, que resulta no filme principal da campanha, conta o que acontece a um homem que, pela primeira vez, decide não comprar o duodécimo que lhe toca, logo no ano em que o prémio gordo sai ao seu grupo de amigos. Vale a pena ver todas as histórias em elbardeantonio.es – todas as histórias têm esse fio condutor, passam-se à volta do bar do António, um bar qualquer de Madrid – e perceber porque é que a Loteria de Navidad merece a importância e o carinho que os espanhóis lhe dedicam sempre, e mais ainda este ano, comprovado pela actividade elogiosa que as redes sociais e os meios de comunicação têm dedicado à campanha.

Também vale a pena ver o negativo desta campanha, sobretudo para o leitor mais curioso: procure no YouTube o anúncio da Loteria de Navidad do ano passado (2013), e depois veja todas as sátiras que ele inspirou, já agora. Não tem nada que enganar, é a antítese da campanha deste ano: passa-se numa aldeia engalanada de dourado, ambiente mágico, bolas e velinhas acesas o tempo todo, filme assim para o grandote como dizem cá em Espanha, onde famosos da música popular espanhola como Montserrat Caballé e Raphael, entre outros, cantam um sucedâneo inenarrável de Natal do “We Are the World” para a aldeia. Feliz Natal e um 2015 cheio de bons anúncios que fazem por merecer as pessoas.

Texto Susana Albuquerque
Directora criativa Tapsa/Young & Rubicam Madrid
susana.albuquerque@yr.com

Fotografia Paulo Alexandrino

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