Debate: Temos de simplificar a linguagem do medicamento

Quantas vezes já consultou o “Dr. Google”? Hoje, é normal que, aos primeiros sinais de doença, o nosso instinto seja o de pesquisar na internet possíveis causas e tratamentos, numa espécie de autodiagnóstico. No entanto, nem toda a informação disponível online é credível ou exacta. Nos últimos anos, em particular desde o início da pandemia de Covid-19, que colocou um maior enfoque na saúde e bem-estar, as empresas farmacêuticas têm, de um modo generalizado, reforçado o investimento na área da literacia em saúde, desenvolvendo cada vez mais acções pedagógicas que visam aumentar o conhecimento dos portugueses sobre diversas doenças e terapêuticas.

Desenvolvidas não raras vezes em parceria com sociedades médicas ou associações de doentes e veiculadas em meios de comunicação tradicionais e digitais, estas acções de literacia têm vindo a contribuir para combater muita da informação falsa ou incorrecta que circula online e que pode ter consequências nefastas para a saúde dos pacientes. «A indústria está a tentar mudar aquela visão que os consumidores tinham de que as empresas farmacêuticas só existem para ganhar dinheiro com a venda de medicamentos. A aceleração digital que a pandemia trouxe criou novas formas de poder chegar ao doente, de aumentar a nossa notoriedade e produzir conteúdos credíveis», frisam os participantes no mais recente pequeno-almoço debate do sector farmacêutico.

Apesar destes avanços, sublinham, ainda há muito trabalho a desenvolver por parte da indústria farmacêutica na área da literacia na saúde, nomeadamente explorar novas ferramentas de comunicação e formas de chegar ao paciente. Nesse sentido, as redes sociais, por exemplo, podem tornar-se um meio de comunicação mais relevante do que têm sido até agora, mas, para que tal aconteça, também é preciso que haja progressos ao nível regulamentar. «O desafio que temos enquanto indústria é simplificar a linguagem do medicamento. Há coisas que temos de acelerar em Portugal, porque temos uma literacia digital muito grande, mas temos restrições regulamentares que impedem essa progressão. Tem de se encontrar um caminho», salientam os responsáveis do sector.

Luís Gomes (Perrigo), Luísa Silva (Sanofi), Manuel Barros (Generis), Paula Pereira da Silva (Jaba Recordati), Pedro Gouveia (Sanofi CHC) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) foram os responsáveis que estiveram presentes no debate, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

SAÚDE PELO TIKTOK?

Os estudos científicos e as bulas dos medicamentos são e continuarão a ser ferramentas de informação fundamentais para a indústria farmacêutica, nomeadamente no que respeita à comunicação com os profissionais de saúde e com o público em geral, mas, num mundo onde a informação está cada vez mais nas pontas dos dedos, urge repensar a forma de entregar essa informação ao paciente de uma forma mais simples e imediata. Nesse sentido, algumas empresas farmacêuticas têm optado, por exemplo, por estabelecer parcerias com influenciadores digitais em acções pontuais que promovem o debate em torno de determinadas patologias e terapêuticas nas redes sociais. Mas também por firmar parcerias com sociedades médicas, como uma forma de gerar conteúdos relevantes que chegam de forma indirecta ao doente, assim como desenvolver aplicações móveis e sites técnicos de consulta simplificada.

Mas é possível ainda ir mais longe? Noutros mercados, sobretudo no Norte da Europa, já é habitual ver empresas farmacêuticas a comunicarem com os seus públicos através de redes sociais como o TikTok, onde partilham vídeos explicativos de como tomar correctamente os seus medicamentos, por exemplo. «Tudo o que não gostamos é de estar a olhar para uma bula. A tendência, sobretudo dos consumidores mais jovens, é ir à internet ver como se faz. Esta é uma transformação que a indústria vai ter de fazer mais cedo ou mais tarde», frisam.

Mesmo que seja utópico pensar que em Portugal as farmacêuticas possam fazer o mesmo, pelo menos no curto prazo, devido a um enquadramento legal mais apertado (sobretudo na promoção dos medicamentos de prescrição), os participantes acreditam que é possível dar passos em frente nesta área, assim haja «audácia» por parte dos diferentes players. «Mesmo sem fazer menção ao produto, é preciso passar muita informação explicativa que pode ajudar os doentes na adesão à terapêutica e na toma correcta», defendem.

O FUTURO DO E-COMMERCE

Ao contrário do que acontece em inúmeros sectores de actividade, na indústria farmacêutica o e-Commerce ainda tem pouca expressão. É verdade que, com a pandemia de Covid-19, «as farmácias deram um salto grande e continuam a trabalhar nessa área, mas ainda têm um longo caminho a percorrer». A própria Associação Nacional das Farmácias – ANF lançou o website das Farmácias Portuguesas, mas que «de e-Commerce tem pouco e é extremamente limitativo», opinam os participantes no debate promovido pela Marketeer.

Por que é que existe tanta dificuldade em desenvolver o e-Commerce farmacêutico? Desde logo, pela complexidade regulamentar. A lei determina, por exemplo, que os medicamentos prescritos só podem ser entregues ao domicílio pelo farmacêutico, e mesmo alguns medicamentos e dispositivos médicos exigem condições especiais no transporte. «Não podemos vender um medicamento da mesma forma que vendemos um par de sapatos.»

Além disso, as próprias farmácias ainda têm, de uma forma generalizada, dificuldade em perceber como podem fazer essa gestão multicanal (online e offline) e poucas estão dispostas a investir na contratação de pessoal especializado, não farmacêutico, para gerir esta nova área de negócio.

«O que hoje acontece é que o profissional de saúde que está ao balcão é o mesmo que dá uma “perninha” no e-Commerce. E isso nunca vai funcionar, porque é preciso ter pessoas 100% dedicadas a essa área», explanam os responsáveis do sector. «É preciso ter conhecimento e tempo para explorar o tema. E esse não tem sido o foco da farmácia, que foi empurrada para o e-Commerce por necessidade», reiteram.

Não obstante existirem já algumas farmácias e grupos de farmácias que têm plataformas de e-Commerce avançadas, embora limitadas geograficamente, o e-Commerce farmacêutico só terá expressão quando for criado um marketplace verdadeiramente nacional, que possa agregar farmácias de norte a sul do País. «Se o sector nacional da farmácia não tiver capacidade de desenvolver um marketplace, nunca vai existir. E possivelmente serão os marketplaces espanhóis – que já entram muito no quotidiano dos portugueses – que vão proliferar no mercado nacional. Isto é o que já está a acontecer», alertam os participantes. Certo é que a eventual criação de um marketplace «terá sempre que envolver as farmácias» e terá que resultar da comunhão de vários players, uma vez que «as farmácias isoladamente não têm capacidade para o fazer». Mas, acima de tudo, vai exigir uma mudança de mindset. «Enquanto a farmácia não perceber que o e-Commerce é verdadeiramente um negócio e que poderá ser uma alavanca para o seu, vai ser difícil», frisam.

RUPTURA DE MEDICAMENTOS

Outro tema na ordem do dia é o da falta de medicamentos nas farmácias. Se 2022 foi um ano muito positivo para o mercado farmacêutico, que cresceu 10,7% em valor (fonte: HMR – Health Market Research), a ruptura de medicamentos tem feito manchetes desde o início deste ano. De acordo com o Infarmed, a ruptura deve-se, nalguns casos, a problemas de fabrico, noutros, a falhas na distribuição, ou ainda ao aumento da procura dos consumidores por determinadas moléculas.

Os responsáveis inquiridos pela Marketeer acrescentam que há também um «efeito de pânico» por parte dos próprios distribuidores, que procuram fazer armazenamento de determinados produtos em antecipação a uma eventual escassez. «Por vezes, o produto nem sequer entra em ruptura de stock, porque acautelamos internamente estes processos, mas os pedidos [de encomendas] aumentam drasticamente com medo que haja escassez do produto no mercado. Já notamos isso nalguns produtos», revelam os responsáveis, dando conta que algumas remessas de medicamentos, que normalmente eram vendidas no espaço de um mês, estão a esgotar em apenas uma semana. «Quando começámos a ter este aumento de pedidos de algumas moléculas por parte dos armazenistas, tivemos que nos salvaguardar e estabelecer algumas regras para a distribuição », explanam.

A este respeito, esclarecem que a legislação em vigor determina que as empresas farmacêuticas têm de ter stocks de segurança de 60 dias, no caso dos medicamentos sujeitos a receita médica. Já no caso dos suplementos, não há uma obrigatoriedade, mas uma recomendação do Infarmed no mesmo sentido. Além disso, sempre que existe uma previsão de ruptura de stock, têm que notificar o Infarmed com 60 dias de antecedência. A par do aumento das encomendas, continua a verificar-se um agravamento dos lead times nas entregas dos medicamentos às empresas farmacêuticas, que «passaram para prazos muito superiores, sobretudo para quem está dependente de fornecimentos externos». Como as entregas demoram mais tempo, isso também contribui para que os armazenistas, farmácias, grupos de farmácias, entre outros, tendam a fazer encomendas de maior volume, por vezes para o dobro ou o triplo em relação ao que era habitual no passado.

A montante, há outro problema que influencia o mercado e que está relacionado com a escassez de matérias-primas, que tem levado a um aumento dos custos de produção de alguns medicamentos – por exemplo, dos que têm como princípio activo o paracetamol. «Existe o risco de haver rupturas de stock ou mesmo indisponibilidade de produto no mercado, porque, do ponto de vista empresarial, é impossível produzir um medicamento com um custo mais elevado do que o preço de venda ao doente», explicam os intervenientes.

Em suma, a gestão e logística de stocks serão um dos desafios para 2023. «Pelas características do nosso mercado, basta que dois ou três players tenham falhas de abastecimento mais prolongadas para que todos os outros fiquem sem produto e sem os seus stocks de segurança», finalizam.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Saúde”, publicado na edição de Fevereiro (n.º 319) da Marketeer.

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