Debate: E depois do melhor ano de sempre?

No ano passado, o sector nacional do Turismo alcançou receitas de 22 mil milhões de euros, um recorde histórico que supera em 20% o valor registado em 2019. Depois de dois anos difíceis de pandemia, as notícias não podiam ser mais positivas para a indústria. À entrada para 2023, o desafio para os players do sector passa agora por manter a tendência de crescimento, sabendo, porém, que factores como a guerra na Ucrânia e a subida da inflação e das taxas de juro serão obstáculos difíceis de contornar.

Não obstante, na hotelaria, as reservas previstas para os três primeiros meses do ano parecem já vir a estar muito acima do período homólogo do ano passado, que foi fatídico para o sector. Pelo menos são estes os dados avançados pelos responsáveis ouvidos pela Marketeer no mais recente almoço- -debate do sector, com todos os presentes a garantir que este foi «dos melhores Janeiros de sempre». Também o tráfego nos aeroportos está, neste arranque de ano, a crescer 10% acima de 2019, contra todas as previsões.

Olhando mais para a frente, e combinando diferentes estimativas, o crescimento de receitas do sector do Turismo em 2023 face a 2022 deverá rondar 8 a 12%.

Há, contudo, uma grande incerteza que começa na permanência da guerra e continua na crise pandémica. «Quando se avaliam tendências, só se vêem receios, em particular relacionados com a perda do poder de compra. E os portugueses são dos mais sensíveis às oscilações do poder de compra. Tendo em conta, ainda, a inflação e o aumento das taxas de juro, no início de 2023 esperava-se um ano positivo, mas inferior ao de 2022. Só que nada disto está a acontecer. A que acresce que o primeiro trimestre compara com um primeiro trimestre [de 2022] em que estivemos parados, pelo que é possível pensar num crescimento em 2023 e, eventualmente, a 10%», frisam.

Álvaro Covões (Everything is New), Andrea Granja (Tivoli Hotels & Resorts), Bernardo Corrêa de Barros (Associação de Turismo de Cascais), Catarina Figueiredo (Pestana Hotel Group), Catarina Pádua e Silva (Vila Galé), Francisco Pita (ANA – Aeroportos de Portugal), João Pinto Coelho (Onyria Group), Lídia Monteiro (Turismo de Portugal), Manuel di Pietro (Taste Catering & Events), Paulo Ramada (AP Hotels & Resorts), Pedro Costa Ferreira (Associação Portuguesa da Agências de Viagens e Turismo – APAVT), Pedro Ribeiro (Dom Pedro Hotels & Golf Collection), Luís Araújo (Turismo de Portugal), Marta Alves (TAP), Nuno Sousa (TAP) e Solange Moreira (Be Live Hotels) foram os intervenientes no almoço que decorreu no Hotel Dom Pedro Lisboa.

HABITAÇÃO É PONTO DE PRESSÃO

Estas previsões, apesar de optimistas, estão ainda longe de se poder confirmar, alertam os participantes. Porque, se aparentemente se ultrapassaram todos os receios, o aumento das taxas de juro, em particular, não poderá deixar de ter impacto no consumo. Além de que vectores como a inflação ou a guerra na Ucrânia não são controláveis, o que poderá impactar mais o sector do que se pode prever.

Face aos bons resultados, os responsáveis expressam ainda o receio de que possa haver algum aproveitamento político da situação, ao nível da implementação das taxas turísticas ou do IVA, por exemplo. «Poderá haver aqui algum movimento, até pressionado por toda a componente social. Criou-se a ideia de que a culpa de não haver casas para arrendar em Lisboa é, apenas e só, do Turismo e vistos Gold. Esta pressão pode fazer com que ao longo do ano muitas fatias sejam engolidas por interesses difusos», vocalizam.

A este respeito, todos os presentes à volta da mesa concordam que o problema da habitação em Portugal não está relacionado com a venda de casas a estrangeiros – que representam menos de 12% das transacções, de acordo com os dados mais recentes do Banco de Portugal – nem com os vistos Gold aplicados ao sector imobiliário, mas sobretudo com a falta de licenças para construção nova, o que coloca pressão sobre o mercado. «Enquanto se fala dos estrangeiros e do alojamento local não se fala do verdadeiro problema, que é a burocracia e a falta de vontade», criticam. «Deve haver agravamentos fiscais à compra de casa por parte de estrangeiros, mas essencialmente os municípios têm de aumentar o seu parque habitacional», reiteram.

De resto, as câmaras municipais deverão receber este ano cerca de 50 milhões de euros em taxas turísticas, mas «serão poucas as que estão preocupadas em utilizar esses valores em prol do Turismo», pesando aqui o ponto da habitação. «Construir habitação, hoje, por ser positivo para o Turismo», até porque muitos operadores não conseguem recrutar pessoas em regiões como o Algarve, por exemplo, devido precisamente à escassez de habitação e a uma débil rede de transportes.

«A taxa turística é para dirimir os efeitos do excesso de turistas, mas normalmente os municípios querem o dinheiro para criar condições para trazer mais turistas. É esquizofrénico», referem.

CRISE DE MÃO-DE-OBRA

Também o tema da aviação entra nas preocupações dos responsáveis para 2023. «Há muita tentação, em particular na Europa, em cumprir com as metas [de sustentabilidade] para 2030, começando a colocar bloqueios à aviação. E, aí, ficamos fora de jogo, até porque nem a Madrid chegamos de comboio», alertam. A colocação de limites ao número de passageiros que podem desembarcar ou aos horários de ruído são medidas que poderão vir a impactar a actividade turística, cabendo ao sector «sensibilizar a sociedade de que o Turismo é positivo para o País».

Outro tema que causa apreensão entre os participantes é a escassez de recursos humanos, um problema estrutural do sector. Enquanto a elevada carga fiscal continua a ser o principal entrave para oferecer salários competitivos e prémios de produtividade, o problema tem vindo a agravar-se pela falta de mão-de-obra disponível para trabalhar no sector e muitas empresas vêem-se obrigadas a recrutar no estrangeiro, em países como Cabo Verde, Brasil ou Panamá. Contudo, muitos dos processos de contratação têm esbarrado na obtenção de vistos de trabalho, que no ano passado demoraram, em média, cerca de seis meses para ter “luz verde”.

Durante o almoço, segundo a experiência dos responsáveis do sector é que, apesar da alteração à Lei dos Estrangeiros, em Outubro passado, que passou a responsabilidade da atribuição dos vistos do SEF para as mãos dos consulados, a situação ao nível burocrático não tem, por enquanto, melhorias.

A POLÉMICA DAS JMJ

Ainda faltam cerca de seis meses para a realização das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) em Portugal, mas o tema tem feito correr muita tinta, sobretudo pelo montante do investimento público no evento. As estimativas apontam para que cheguem a Lisboa durante a primeira semana de Agosto entre 1 e 1,5 milhões de pessoas, além de todo o tráfego turístico que será habitual nessa altura do ano.

À partida, estas são óptimas notícias para o sector do Turismo, mas há que ter em conta que o público que virá para participar nas JMJ será composto maioritariamente por jovens, com menor poder de compra.

E enquanto o Papa Francisco anunciou que já há cerca de 400 mil jovens confirmados para as JMJ, por enquanto «os hotéis de quatro e cinco estrelas não estão a sentir qualquer impacto» nas reservas. Mesmo ao nível da aviação, algumas companhias criaram, em parceria com a organização das JMJ, tarifas especiais para grupos, mas sempre com número de lugares no avião limitados. Além disso, não haverá capacidade no aeroporto de Lisboa para receber todas estas pessoas, pelo que muitas terão que aterrar no Porto, em Faro ou até mesmo em Beja.

«No ponto em que estamos de visibilidade, procura e crescimento em valor, ainda precisamos de um evento destes?», questiona-se à mesa. Mas também há quem não tenha dúvidas: «Absolutamente. A possibilidade de trazer um milhão de jovens a este País é a maior oportunidade do século. Porque vão ser marketeers do País, o buzz que vão criar em relação ao destino, a vontade que vão ter de regressar mais tarde… tem tudo para ser o maior evento que já se fez em Portugal, com o investimento mais baixo de sempre num evento desta dimensão. E uma grande parte do investimento vai ficar, nomeadamente uma parte do palco, além de que vamos ficar com um parque urbano reabilitado.»

OBRAS NO AEROPORTO

Enquanto o dossier do novo aeroporto de Lisboa não avança, em 2023 haverá obras no actual aeroporto para aumentar a eficiência global desta infra-estrutura.

As obras estão orçamentadas entre 200 e 300 milhões de euros e deverão começar no final do ano, ainda que já tenham sido iniciadas algumas intervenções menores no aeroporto. Estas obras, que deverão demorar cerca de três anos a ser concluídas, não resultarão num aumento de capacidade do aeroporto, mas antes na melhoria da eficiência, através de medidas como a criação de uma nova placa de estacionamento com possibilidade de colocar os aviões em contacto com a infra-estrutura, o que permitirá às companhias aéreas reduzirem os tempos de turnaround (procedimentos em terra entre a chegada e a partida de um avião).

Apesar de tudo, os responsáveis presentes no almoço notam que fica ainda por resolver o problema dos slots – as faixas horárias que as companhias aéreas podem usar para descolar e aterrar nos aeroportos. A actual directiva de slots da União Europeia, que «tem mais de 30 anos», permite às companhias aéreas utilizarem apenas 80% dos slots que lhes são atribuídos, mantendo o direito cativo sobre os 100%, o que dificulta a entrada de novas companhias aéreas.

«Num aeroporto congestionado, como o de Lisboa, não faz sentido», referem os participantes, lembrando que para o Verão de 2023 o aeroporto de Lisboa vai ter de recusar slots equivalentes a um milhão de passageiros. A directiva de slots vai ser revista este ano pela Comissão Europeia.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Turismo”, publicado na edição de Fevereiro (n.º 319) da Marketeer.

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