O SNS está em perigo?
Qual o impacto da crise no Serviço Nacional de Saúde sobre a indústria farmacêutica? E quais as soluções possíveis? Este foi o mote para o 13.º pequeno-almoço debate da Marketeer com profissionais da indústria farmacêutica.
A crise financeira da última década teve impacto directo sobre vários sectores da economia portuguesa, incluindo o da saúde. O Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma das principais bandeiras da democracia portuguesa, enfrenta hoje uma crise estrutural profunda, da qual a falta de pessoal médico será apenas a parte mais visível e mediática. Numa altura em que se discute a nova proposta da Lei de Bases da Saúde, fomos ouvir a opinião de profissionais de um dos sectores mais interessados na matéria, o farmacêutico.
Para os responsáveis da indústria farmacêutica presentes no pequeno-almoço debate da Marketeer, é urgente que se dê início a uma reforma do Serviço Nacional de Saúde, que possa resolver os problemas actuais e evitar novos desafios no futuro, mas preservando ao máximo os princípios fundadores deste sistema, criado em 1979 por António Arnaut. Ainda assim, levantam algumas dúvidas de que seja possível manter o SNS nos moldes em que o conhecemos, «o que seria uma pena para todos nós». Até porque a «privatização progressiva da saúde», defendem, tem sido penalizadora, para os doentes e para a indústria.
«O nosso sistema [de saúde] é reconhecidamente um dos melhores que existem. Quando olhamos para mercados como a Inglaterra, o acesso ao medicamento tem limitações que nós não temos. O doente português ainda tem acesso ao medicamento, mas a tendência é para haver cada vez mais constrangimentos. O SNS terá que ser reformulado », opinam os participantes. «Independentemente das questões políticas, há uma dificuldade grande para o Estado fazer face ao SNS e à Segurança Social, que estão muito interligados. Provavelmente, se mantivermos o desenvolvimento económico que temos tido nas últimas décadas, [o SNS] está condenado. É uma pena, porque a alternativa é bem pior», reiteram.
Ana Carmo (Johnson & Johnson), Manuel Correia (Bial), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sofia Freire (Angelini) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) foram os responsáveis presentes no mais recente pequeno-almoço debate da Marketeer dedicado à indústria farmacêutica, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Alcântara, Lisboa.
Prós e contras do SNS
De acordo com os profissionais presentes no debate organizado pela Marketeer, em teoria, o Serviço Nacional de Saúde português é um dos modelos de saúde mais benéficos, quer para os cidadãos, quer para a indústria farmacêutica. «É um sistema universal, o que quer dizer que temos 10 milhões de potenciais consumidores dos nossos produtos. À partida, é um modelo muito melhor para a indústria farmacêutica do que outros alternativos. Temos os exemplos da Alemanha e de outros países europeus que usam modelos que são francamente piores para nós, enquanto indústria », consideram.
Além disso, explicam, a forma como está estruturado o SNS acaba por garantir equidade de oportunidades às empresas farmacêuticas, uma vez que o profissional de saúde tem liberdade para prescrever ao doente o medicamento que considerar mais adequado. «Quando vamos para outros sistemas nacionais de saúde, muitas vezes o que acontece é que o co-pagamento é assegurado pelas seguradoras que, obviamente, são empresas que visam lucro e negoceiam com a indústria quais os produtos a comparticipar. E isto condiciona o profissional de saúde», esclarecem. Comparando com os países do Norte da Europa, por exemplo, que são “mercados genericizados”, ou seja, onde predomina a prescrição de genéricos, o mercado português também acaba por ser mais atractivo.
Contudo, este modelo também tem contras para a indústria farmacêutica, nomeadamente uma excessiva dependência do Estado no que toca às comparticipações dos medicamentos e uma consequente barreira à inovação. «O problema para a indústria é que o Estado aparece aqui como pagador e não como o consumidor final. E aqui começam os problemas, porque o Estado cada vez quer pagar menos! Em termos políticos, a indústria farmacêutica é sempre a má da fita, são as multinacionais que vêm “explorar” os doentes portugueses», lamentam. «No passado, [o Estado] suportava 75% dos medicamentos, mas tem vindo a reduzir e agora, nalguns casos, já não apoia rigorosamente nada», frisam.
A acrescentar a este dado, o investimento público torna-se ainda mais premente para fazer face aos desafios do futuro que, não sendo exclusivos de Portugal, têm uma grande preponderância no nosso País: o envelhecimento da população vai continuar a aumentar a pressão sobre o SNS. «O envelhecimento da população é [um problema] reconhecido e a tendência é mesmo muito preocupante. A taxa de natalidade é a segunda mais baixa da Europa. E isto muda muito o paradigma do Serviço Nacional de Saúde e interfere com a dinâmica da própria indústria farmacêutica – o tipo de doente, o tipo de custos, entre outros factores», alertam.
Cortes nas comparticipações
Por norma, quando se fala da necessidade de reforma da saúde, os encargos do Estado com as comparticipações a medicamentos é um dos temas que dominam a agenda mediática e política. Segundo os participantes no debate promovido pela Marketeer, a realidade é que a taxa de comparticipação tem vindo a diminuir nos últimos anos, muito por via da passagem de medicamentos sujeitos a receita médica (na sua grande maioria, comparticipados) a OTC (“over-the-counter” ou medicamentos de venda livre, e sem comparticipação). Nos primeiros cinco meses de 2017, a taxa de comparticipação média foi de 63,9%, concluiu um estudo do Centro de Estudos e Avaliação em Saúde (CEFAR).
«Cada vez mais vai haver a mudança de medicamentos sujeitos a receita médica para OTC, para aliviar a carga do Estado», vaticinam os responsáveis do sector, que acusam o Infarmed de colocar alguns obstáculos por considerar que «alguns medicamentos não podem passar a OTC, às vezes obviamente por questões de segurança, mas noutros casos por questões burocráticas (por exemplo, porque a molécula não está na lista de OTC)».
O aumento da quota de genéricos – que no primeiro trimestre deste ano ascendeu a 48,2% – e o maior rigor no acesso à inovação são outros caminhos alternativos que têm sido percorridos para aliviar a carga do Estado no sector da saúde. Assim como a passagem de medicamentos sujeitos a receita médica para a chamada “Terceira Lista”, que engloba medicamentos de venda livre, mas que apenas podem ser comercializados em farmácia. «Há um conflito de interesses muito grande, e que já é cultural, entre as próprias farmácias, os enfermeiros e os médicos para perceber quem tem o ónus da recomendação. O médico cada vez mais escolhe a área terapêutica, a substância activa, mas não o medicamento», explanam.
Contudo, os profissionais da indústria farmacêutica defendem que o grosso do problema não está nas comparticipações. «A grande questão do SNS é: onde é que gastamos o dinheiro do cidadão? O medicamento surge quase sempre em primeiro na discussão pública. Embora tenha um peso relevante, não é o principal custo. Existem muitas outras áreas onde o impacto para a despesa é muito maior, mas onde se evita a discussão sobre o modo como esses recursos são geridos. Os decisores políticos têm consciência que não vão resolver o problema do Serviço Nacional de Saúde com os medicamentos, ainda que possa haver ajustamentos», defendem.
Apesar de todos os problemas identificados, os responsáveis deixam uma nota de optimismo para o futuro do SNS: «Os nossos recursos humanos são muito bons e têm vindo a melhorar, e isso dá-nos algum optimismo. Os outros recursos podem ser reajustados, mas o corpo clínico continuará a ser um dos melhores», sublinham.
Artigo publicado na edição n.º 265 de Agosto de 2018.