Estará a investigação na saúde em risco?
A nova alteração à Lei do Estatuto do Medicamento, que proíbe as empresas farmacêuticas de financiarem projectos de investigação, e as compras centralizadas de medicamentos, por parte dos hospitais públicos, são alguns dos desafios que a indústria terá que enfrentar em 2017.
Texto de Daniel Almeida
Fotos de Pedro Simões
Este ano, várias são as alterações que se perspectivam na indústria farmacêutica em Portugal, algumas das quais poderão mudar radicalmente a face do sector. Desde logo, a notícia, que caiu que nem uma “bomba” no seio da indústria. Logo a 6 de Janeiro, o Ministério da Saúde promulgou um decreto-lei em Diário da República (DL n.º 5/2017) que, no seu 9.º artigo, proíbe os estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de promoverem a angariação ou receberem directa ou indirectamente dinheiro por parte de empresas prestadoras de bens e serviços “que possam afectar ou vir a afectar a isenção e imparcialidade”.
A medida, que entrou em vigor na passado dia 5, proíbe ainda as empresas que actuam em áreas como os medicamentos ou dispositivos médicos de patrocinarem acções de natureza científica – como sejam sessões informativas, congressos, acções de formação ou investigação científica – em hospitais ou outras entidades do SNS. Este é um dos pontos que tem gerado maior celeuma, contando já com diversas reacções, quer por parte da associação que representa a indústria farmacêutica, a Apifarma, quer por parte da própria comunidade médica.
O tema foi também debatido no mais recente pequeno-almoço da Marketeer com responsáveis da indústria farmacêutica. De acordo com os participantes, «esta é uma grande barreira que está a assustar toda a gente» do sector, sobretudo porque coloca «em risco» a investigação contínua dos médicos, ou não fosse a indústria farmacêutica o principal promotor (93%) de ensaios clínicos em Portugal.
«Os investigadores, que pediam patrocínio às empresas [farmacêuticas] para projectos de investigação, vão deixar de poder fazê-lo. Não nos podemos esquecer que, na sua formação, os médicos internos têm que fazer muitos projectos de investigação, e a maior parte deles tinha o apoio da indústria farmacêutica», sublinham os responsáveis.
Para além disso, acrescentam, a nova lei coloca entraves à comunicação das empresas com a comunidade médica, uma vez que eventos como jornadas e reuniões científicas, até agora regulares, ou acabam ou terão que passar a ser feitos fora dos hospitais, o que coloca algumas barreiras logísticas. Ainda assim, os responsáveis mostraram-se «expectantes » de que o novo decreto-lei possa vir a ser reavaliado, ou que haja, no mínimo, um esclarecimento por parte do Ministério.
O VII pequeno-almoço da Marketeer com responsáveis da indústria farmacêutica decorreu no hotel The Vintage House, em Lisboa, e contou com a participação de Luísa Silva (Sanofi), Pedro Martins (Novartis), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati) e Sofia Freire (Angelini), que aceitaram falar sobre as mais recentes transformações do sector.
Compras centralizadas nos hospitais
Outro desafio que as empresas farmacêuticas terão que enfrentar este ano prende-se com o aumento das compras centralizadas de medicamentos por parte dos hospitais públicos. À semelhança do que já acontece no canal das farmácias, por exemplo, os hospitais públicos passarão, cada vez mais, a negociar a compra partilhada de grandes quantidades de medicamentos com as denominadas centrais de compras, com o intuito de reduzir as despesas do Estado.
O tema não é propriamente uma novidade, mas terá tendência para se acentuar este ano. «A nível hospitalar, começámos em 2016 a observar compras centralizadas para alguns grupos terapêuticos, ainda que de forma relativamente residual. Este ano, o Ministério da Saúde ambiciona que cerca de 80% do volume de utilização dos hospitais [públicos] seja via compra centralizada», afirmam os participantes. «Isto retira capacidade de negociação às empresas farmacêuticas. Enquanto antes conseguíamos ir ao hospital e fazer a nossa negociação, agora já não», lamentam.
Tendo em conta que os hospitais públicos respondem por cerca de metade das despesas totais com medicação – ainda que, em comparação com os privados, assumam geralmente as despesas dos medicamentos mais caros, em áreas terapêuticas como a oncologia -, este promete «ser um desafio» para o sector, sobretudo para as empresas que assentam o seu negócio no segmento hospitalar.
Concentração irá aumentar
O fenómeno das compras centralizadas a nível hospitalar não é exclusivo do mercado português, começando «a notar-se um pouco por toda a Europa», e pode vir a adensar o movimento de concentração do mercado farmacêutico, que se tem vindo a verificar nos últimos anos. Porquê? Porque ao perderem poder negocial, as empresas irão procurar, cada vez mais, especializar-se em determinadas áreas terapêuticas através de aquisições, joint-ventures e business swaps.
Um exemplo é a joint-venture mundial, firmada em 2015, entre a Novartis e a GlaxoSmithKline (GSK), no âmbito da qual a Novartis adquiriu o portefólio de oncologia da GSK, vendendo em contrapartida à congénere britânica a sua unidade de vacinas e portefólio de medicamentos não sujeitos a receita médica (Voltaren, Mebocaína, entre outras marcas). Já este ano, começou praticamente com as notícias de um business swap entre a Sanofi e a Boehringer Ingelheim (BI), no seguimento do qual a Sanofi recebeu o negócio de consumer healthcare da BI em troca pelo seu negócio de saúde animal.
Na opinião dos responsáveis presentes no debate da Marketeer, este tipo de negócios será cada vez mais normal – mais até do que as fusões. A concentração do mercado «não será tanto pela compra de grandes empresas, mas pela troca de negócios e compra de biotecnológicas ou pequenas empresas de inovação ». «Ao adquirirem startups, as grandes companhias aparecem como fornecedores exclusivos de certos medicamentos e, como tal, rompem um pouco com a compra centralizada », explicam os responsáveis.
OTC (e não só) continuarão a crescer
De acordo com os participantes no debate da Marketeer, as restrições que hoje existem no segmento dos medicamentos éticos (sujeitos a receita médica), deverão levar a que as companhias farmacêuticas, que têm no seu portefólio produtos OTC (medicamentos over-the-counter, ou não sujeitos a receita médica), reforcem, em 2017, a sua oferta nesta área. «Vai haver cada vez mais produtos OTC [no mercado], não porque haja um desvio do foco das empresas dos medicamentos por prescrição para os OTC, mas porque as empresas vão procurar passar alguns dos medicamentos éticos para essa área. Isto acontece porque a área OTC tem hoje um peso estratégico completamente diferente do que tinha há alguns anos», explicam os responsáveis.
Assiste-se também, em todo o mundo, à procura crescente, por parte dos consumidores, de outros produtos que não medicamentos, nas farmácias. É por isso, alertam, importante que as empresas farmacêuticas estejam atentas a oportunidades de alargamento de portefólio em categorias de crescente foco da farmácia, tais como a Dermocosmética, Puericultura, Suplementos Alimentares, entre outras.
Essa aposta deve ser complementada com acções de recrutamento e fidelização de consumidores às marcas e à própria farmácia, como sejam activações no ponto de venda, nos grandes meios, na área digital ou eventos de experiência com as marcas. «Portefólios mais alargados garantirão menor dependência em cada área e permitirão uma maior abrangência de competências», concluem.
Artigo publicado na edição n.º 247 de Fevereiro de 2017.