Debate: A importância do autocuidado

Nos últimos anos, a literacia em saúde tem vindo a aumentar em Portugal. Esta é uma tendência latente no sector, sobretudo desde o início da pandemia de Covid-19, uma vez que os portugueses, de um modo geral, estão mais preocupados e atentos à sua saúde e procuram activamente obter informações que os ajudem a melhorar o seu bem-estar. As empresas farmacêuticas, por outro lado, têm vindo a dar resposta e a envidar esforços na realização de campanhas e acções de literacia que são difundidas em canais como o ponto de venda (farmácia) e o digital (recorrendo a plataformas como as redes sociais e websites, mas também a novos formatos, como podcasts).

O tema deu o mote ao mais recente pequeno-almoço debate do sector das farmacêuticas, promovido pela Marketeer. De acordo com os participantes, a literacia em saúde assume mesmo uma importância instrumental para a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Como?

Numa altura em que o SNS está sob pressão, capacitar as pessoas para que estas possam tomar decisões informadas e sustentadas sobre a sua própria saúde – o chamado autocuidado – poderá evitar muitas deslocações desnecessárias aos hospitais e centros de saúde.

Com efeito, um estudo promovido por uma empresa farmacêutica conclui que a prevenção na saúde pode contribuir para poupar cerca de 1/5 dos custos totais do Sistema Nacional de Saúde, em termos de hospitalizações e de acesso aos centros de saúde. Além de que um melhor autocuidado pode gerar mais 72 mil milhões de dias de vida até 2030. «Se a pessoa estiver mais informada sobre as opções de autocuidado, se calhar vai à farmácia pedir um conselho em vez de ir directamente às urgências do hospital», sublinham os responsáveis presentes no debate organizado pela Marketeer.

Luísa Silva (Sanofi), Manuel Barros (Generis), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) e Vera Grilo (Medinfar) foram os participantes no mais recente pequeno-almoço debate do sector das farmacêuticas, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

O EMPODERAMENTO DA FARMÁCIA

No que diz respeito ao tema do autocuidado, há dois players do ecossistema da saúde que devem ser os principais motores do aumento da literacia da população. «A indústria [farmacêutica] tem claramente um papel, até porque os consumidores procuram cada vez mais informação no canal digital e aí a indústria deve até “regular” aquilo que é comunicado na área da saúde, no sentido de transmitir uma informação credível e combater a contra-informação que existe. O outro pilar é a farmácia, que tem profissionais de saúde que estão perfeitamente capacitados para responder, não a todas as questões, mas a muitas delas», frisam os responsáveis.

Porém, pedem que sejam dados avanços ao nível da regulamentação no mercado nacional, uma vez que consideram existir barreiras legais que são «obstáculos à comunicação» dos produtos farmacêuticos, inclusive dos OTC (over-the-counter, ou medicamentos de venda livre). Enquanto existe maior liberdade para comunicar a doença em si, a dificuldade está em comunicar as soluções terapêuticas para essa doença. «Mas podemos, cada vez mais, promover a literacia em saúde em canais de grande alcance, como as redes sociais, onde também é possível passar informação credível e actual através de profissionais de saúde activos nas redes e de digital opinion leaders (DOL)», explicam.

Já pelo lado positivo, lembram que têm sido dados alguns passos no sentido de melhorar o acesso ao medicamento e à farmácia, aliviando assim um pouco do stress para o SNS. Recentemente, o Governo aprovou, em Conselho de Ministros, o diploma que estabelece que os utentes do SNS vão passar a ter acesso aos medicamentos prescritos em hospital nas farmácias. Além de que estas vão passar a fazer a renovação automática da medicação para doentes crónicos prescrita pelo SNS.

As novas regras «dão um empoderamento muito maior às farmácias», o que, com o estado actual do SNS, «é fundamental para dar resposta» aos doentes. A farmácia está a ser novamente posta “à prova” em termos de mudança de paradigma. Mas será que vai conseguir ter um papel mais activo? «As farmácias vivem um momento óptimo para que isso aconteça. Deram os primeiros passos na pandemia», explanam os responsáveis.

SNS: QUE OUTRAS SOLUÇÕES?

As notícias sobre a crise do SNS têm sido constantes, em particular ao longo dos últimos meses, com as sucessivas greves dos médicos e enfermeiros, encerramentos de maternidades e urgências, rupturas de medicamentos e a escassez de médicos a fazerem manchetes. Para os responsáveis do sector ouvidos pela Marketeer, apesar de todas as notícias que dão a ideia de que o SNS está «de rastos», Portugal tem «um dos melhores sistemas de saúde» da Europa. «Se compararmos com países como a Irlanda ou o Reino Unido, temos um SNS substancialmente melhor, mais equitativo e abrangente, onde temos acesso a tudo. Noutros países, não há essa cobertura», salientam os participantes.

O que está em causa, argumentam, é a má gestão que tem sido feita do SNS, particularmente no que diz respeito aos recursos humanos. «O que falta ao Sistema Nacional de Saúde é uma gestão eficiente. A gestão dos recursos humanos tem de ser optimizada, porque se não houver esses recursos, o sistema não pode funcionar», reforçam. «Por que é que temos de ir buscar 300 médicos a Cuba?», questionam, de forma retórica.

O principal problema da reestruturação do SNS, pelo menos ao nível de recursos humanos e da gestão das equipas, é mesmo a inércia na tomada de decisão, apontam. Recentemente, para dar resposta à falta de recursos humanos nos serviços de urgência de muitos hospitais do SNS, foi lançada uma proposta para a criação da especialidade de Medicina de Urgência, mas a mesma foi chumbada pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos. «Era uma proposta que se calhar vinha colmatar a falta de obstetras, cardiologistas e um conjunto de outras especialidades nas urgências. E se calhar permitia reduzir também os períodos de espera para as consultas », referem os responsáveis.

Os mesmos entraves estão na base da formação de médicos em Portugal. Além da longa duração dos cursos – são precisos vários anos para que os alunos possam concluir a especialidade –, as faculdades de Medicina são escassas e as médias de acesso, por consequência, muito elevadas.

E a oferta curricular não deverá mudar substancialmente nos próximos anos. Recentemente, duas propostas para a criação de mestrados integrados em Medicina foram chumbadas pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. «Os lobbies são tantos, as pressões são tantas, que nada anda para a frente», lamentam.

PERSPECTIVAS DE CRESCIMENTO

Quanto a perspectivas para o mercado farmacêutico este ano, são «bastante positivas». Se o ano de 2022 já tinha ficado «muito acima das expectativas» e superado inclusive os números de 2019 (pré-pandemia), 2023 tem sido ainda melhor para a indústria, com alguns players a preverem não só cumprir os objectivos traçados no início do ano, mas a ficar «substancialmente acima» dessas previsões.

E as estimativas são corroboradas pelos dados do mercado: no acumulado dos primeiros seis meses do ano, o mercado farmacêutico cresceu 6,3% face ao ano passado, um crescimento «significativo, tendo em conta que 2022 já foi um bom ano». O aumento é transversal a todas as áreas terapêuticas – com destaque para as classes de antidepressivos, ansiolíticos, estabilizadores de humor e diabetes (com o aparecimento dos genéricos) – mas menos significativo em áreas como os suplementos e os medicamentos de venda livre. Além de factores como a inflação e a redução do poder de compra, o menor fulgor desta última categoria explica-se sobretudo pelo crescimento mais tímido dos produtos de Inverno (cough & cold) – como antitússicos ou descongestionantes nasais – que tiveram uma quebra significativa durante o período da pandemia, em que as pessoas estavam confinadas em casa, e ainda não recuperaram totalmente ao nível de vendas.

Já os medicamentos genéricos cresceram 18% no período em análise, muito alavancado pela queda de patente de alguns medicamentos, que levou a um crescimento súbito da quota de mercado (de 70% ou 80%) nalgumas áreas terapêuticas, como a diabetes.

Que razões explicam o crescimento do mercado farmacêutico? Nesta fase pós-pandemia, as pessoas estão, de um modo geral, mais preocupadas com a prevenção da saúde e a ir mais às farmácias. «Hoje, prestam mais atenção à saúde do que ao que prestavam antes da pandemia», constatam os responsáveis. Esta é a única alteração face ao passado recente, uma vez que outros factores já eram conhecidos, como o envelhecimento da população ou a melhoria do acesso aos medicamentos.

Não obstante a boa performance do sector, já se notam alguns sinais de abrandamento nos meses mais recentes, uma tendência que deverá persistir na segunda metade do ano. Esse abrandamento é mais evidente no mercado OTC, que apresentou nos meses recentes uma evolução negativa em volume de vendas (unidades), apesar de continuar a crescer em valor («há um diferencial de quase sete pontos entre valor e volume»). «É uma nota de que a segunda metade do ano pode trazer um abrandamento face aos últimos tempos» e, aqui, o preço é um ponto sensível.

Apesar de tudo, os números do primeiro semestre foram muito bons e os responsáveis do sector até esperavam que a desaceleração, que encaram como normal, tivesse «chegado mais cedo». Certo é que 2023 será um ano “saudável” para a indústria farmacêutica.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Saúde”, publicado na edição de Agosto (n.º 325) da Marketeer.

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