A moral da mural
Se há memória que não esquecemos de crianças, são as porteiras que passaram pelas nossas vidas (salvo seja). Enquanto o guarda nocturno era aquele ser meio desaparecido que aparecia mais vezes de dia para cobrar as quotas, do que de noite para verificar as portas, a porteira era o “ser” presente, mesmo que muitas vezes escondida ou desaparecida… mas ela estava lá, ela “murava” lá.
Tudo o que de “relevante” se passava no nosso quarteirão (que deveria ter umas 20 portas de prédios e o mesmo número de porteiras) era actividade para a(o) “mural” do “Portal” (comunidade das porteiras do local). A informação chegava de porteira em porteira e era partilhada no prédio por cada uma às saudosas criadas (hoje com a categoria de empregadas técnicas do lar).
O processo de transmissão de informação era perfeito entre as porteiras e suas semelhantes e entre porteiras e respectivas criadas do seu prédio (tinham acesso porque eram uma espécie de “amigo” do “amigo” ou “amigos em comum”).
Em casa da minha mãe, com sete filhos, enchia-se as medidas da porteira. Devemos-lhe alguns castigos mas, verdade seja dita, serviu-nos também muitas vezes de “post” ou “em que estás a pensar?” para que as nossas informações circulassem segura e rapidamente. Quando um dos meus irmãos foi operado a uma perna, bastou ao sair de casa dizer-lhe que ia para o hospital ser operado, que no dia seguinte todo o quarteirão nos perguntava como estava o meu irmão… “vai andando” (resposta apropriada para quem tinha sido operado a uma perna).
Desconfio por isso que o Mark Zuckerberg era filho de uma porteira ou nelas se inspirou para criar o Facebook. E tinha razão, o poder das porteiras era imenso, dominavam a informação como ninguém. Dedicando-se algum tempo a ler mensagens do FB, a perceber o estilo de comunicação, como é aproveitado e para quê e que papel pode ter nas nossas, conseguimos tirar algumas conclusões.
De facto, é impressionante a sua potencialidade e a diversidade de utilizações que tem. Há quem faça do FB o seu meio privilegiado de comunicação, seja de matéria pessoal, seja profissional… há quem aproveite da melhor forma esta ferramenta, quem se exponha ao mundo através dela (qual classificados do “Correio da Manhã”), mas o que mais impressiona não são as capacidades que pessoas e empresas retiram da utilização do FB, mas do novo estilo de linguagem que passou a ser utilizado entre amigos, alguns dos quais com 4879 amigos (“amigos da onça”, já que a maioria nunca se deve ter cruzado na vida…), seja a informarem o mundo de 10 em 10 m do local aonde estão (“Xuxu just checked in @ Restaurante Sushi’s foursquare”… e, para aumentar a nossa cultura, 10 m depois “Xuxu just checked in @ WC Restaurante Sushi’s foursquare”… e assim sucessivamente até chegar à cama e dizer “Xuxu just checked in bed @ home… escrevendo de seguida no mural “hoje tou com a insónia”…). Ou, ainda, “Estou com frio e é Verão, vou vestir uma camisola de Inverno”, ou escrevendo o que estão a pensar (“hoje acordei com a burra!!!”, como se tivesse algum interesse o mundo saber como acorda ou com quem acorda…).
Mais impressionante são os comentários que estes estados de alma provocam noutros estados de alma semelhantes. Que alguém diga uma banalidade é banal, o que passa a ser um “bacanal” de banalidades é a quantidade de banalidades que se dizem duma banalidade, chegando um simples desabafo público no mural “Apetecia-me um caramelo” a gerar 83 comentários (já que “caramelo” pode ter várias interpretações) e a “68 pessoas gostam disto” (disto o quê, de caramelos?).
Apesar das limitações (e do buço), tenho saudades da minha porteira. Ela filtrava, de alguma forma, as banalidades e principalmente impunha regras. O FB é um espectáculo, tem uma dimensão impressionante, é uma ferramenta com enorme potencial para pessoas e empresas, pena que às vezes seja apenas um espectáculo que vale o valor que pagámos por ele (ou seja, zero), mas isso não é problema dos valores e potencialidades do FB, mas do enorme vazio de relações, valores e banalidades com que cada vez mais preenchemos as nossas vidas… no FB toda esta “espuma” vem ao de cima, que não é mais do que tudo aquilo com que o mar se “veste” para não ser visto.
Entre “Mural” e “Moral” há um longo caminho a percorrer, não no FB, mas nas nossas vidas cada vez mais vestidas de futilidades, desinteresses, banalidades e de “amigos” descartáveis, que de amizade nada têm mas que são óptimos para fazer número… as relações estão cada vez mais… completamente cheias de “nada”… até ao dia em que sentirem que afinal têm um vazio enorme na vida, porque a nossa vida precisa de muito mais do que uma quantidade enorme de “amigos” que falam de “nada”, mas precisamos de amigos verdadeiros que não estão ordenados alfabeticamente na nossa vida, mas que estão sentimentalmente ligados a nós. Tudo poderia ser compatível… se soubéssemos gerir estes dois mundos, mas o que se nota é que quanto mais se dedicam ao mundo do FB, menos se aposta no outro mundo “verdadeiro”. É a espuma a cobrir o mar, ou como alguém sabiamente dizia, “o barulho duma árvore a cair é muito maior do que o barulho duma floresta a crescer”… tendemos a dar mais importância e valor ao imediato, ao grito e ao barulho, do que ao silêncio, à profundidade e ao que é intemporal (como a verdadeira amizade).
Estamos a criar uma geração de “amigos” que não o são e a fazê-los competir pela quantidade de “amigos” que têm e não pelo que cada um significa na nossa vida. Ter um amigo deixou de ser uma bênção da vida para passar a ser simplesmente um número a somar aos muitos que já lá estão. As conversas entre amigos eram geralmente especiais, únicas, cúmplices e tantas vezes segredos guardados no nosso baú a sete chaves… hoje as conversas entre “amigos” no FB são igualmente especiais, mas noutro sentido e tantas vezes sem sentido… estamos a trocar a floresta pelo espectáculo da árvore a cair:
Ai, que saudades que tenho da minha porteira… I miss & love you… que Deus a tenha…!