No Marlene, a monotonia não tem lugar à mesa

Na Doca Jardim do Tabaco, junto ao Terminal Internacional de Cruzeiros, em Lisboa, fica localizado o novo restaurante da chef Marlene Vieira, que convida os seus clientes a embarcarem numa viagem de sabores, ancorados em produtos sazonais e locais mas com técnicas e texturas do Mundo.

O nome do espaço é Marlene, – assim mesmo, com vírgula, para simbolizar que a experiência pela frente deve ser sentida e assumida por cada um à sua maneira – e fica situado mesmo na porta ao lado do Zunzum, o gastrobar inaugurado por Marlene Vieira em plena pandemia. O Marlene, estava preparado para abrir ao mesmo tempo, mas o contexto de pandemia aconselhou a adiar o projecto durante cerca de dois anos.

A espera, garantimos desde já, valeu a pena. E vale a pena porque está longe de ser apenas “mais um” restaurante de alta cozinha. É, antes de tudo, um restaurante de autor, onde a chef Marlene Vieira coloca toda a sua alma criativa gastronómica, expondo as suas vivências e influências, até familiares. Exemplo disso é a broa de milho branco que nos serve de entrada e que foi feita de acordo com a receita que lhe foi transmitida pela avó!

Foi o pontapé de saída para uma ementa onde as matérias-primas nacionais são dominantes e a sazonalidade é ponto inegociável. De tal forma que, desde que abriu portas em Abril passado, o Marlene, já mudou de ementa três vezes. Porque, aqui, o desconforto criativo é a força motriz e a monotonia é palavra proibida.

Tudo isto significa que, para entrar no Marlene, é preciso ir de espírito aberto. Desde logo, porque cada menu é uma surpresa, não só na forma – a ementa só é apresentada no momento em que nos sentamos à mesa – como também no conteúdo, pela dança de sabores e texturas que vai chegando à mesa. A brincadeira com as texturas já era imagem de marca da chef Marlene Vieira, mas aqui é levada ao seu expoente máximo.

Começando pelas entradas, somos presenteados com profiteroles de queijo da serra, filhós de foie gras e framboesa e uma mistura sempre vitoriosa de melão, presunto e shiso. Uma combinação de sabores da terra, que logo depois dá lugar aos aromas do mar, transportados numa original tarte de percebes, plâncton, codium e limão preservado, mas também bem evidentes na composição de gamba violeta, rábano e lima caviar.

Um prato de courgette grelhada, que parece serpentear num leite de pinhão e trufa, seguido de sardinha confitada (que promete convencer mesmo quem não é fã deste peixe, como era o nosso caso) abrem o apetite para os pratos principais.

Nesse momento, chega-nos à mesa um prato de borrego com acelgas e molejas – que, ficamos a saber, são umas glândulas (lembra-se de termos dito qualquer coisa sobre “espírito aberto”?), cuja textura gelatinosa pode causar estranheza ao início, mas complementa bem os restantes elementos do prato. Como segundo prato principal, provamos uma combinação (mais consensual, diríamos) de linguado, espargos brancos e caviar, envoltos num molho de textura sedosa que liga todos os elementos.

Para finalizar a refeição, duas sobremesas frescas, uma de ananás dos Açores, mousse de pinhão e granizado de rúcula, e outra de pêssego, pana cotta de chocolate branco, merengue e poejo.

Esta viagem sensorial contou-se em sete momentos (numa ementa com um preço de 95 euros, sem wine pairing), que achámos suficiente, embora esteja disponível também a opção de ementa de 12 momentos (130 euros, também sem bebidas). A par da comida, toda a experiência neste restaurante à beira-rio é potenciada pelo próprio design do espaço, de estilo minimalista e intimista, num ambiente à média luz que permite estarmos concentrados apenas nos pratos e na conversa – ainda que deitando, ocasionalmente, um olho à cozinha aberta no centro do restaurante para ver a arte a ser feita. A criação do espaço ficou a cargo dos arquitectos Ricardo Paulino e Ivone Gonçalves.

O restaurante Marlene, está apenas aberto para jantares de quarta-feira a sábado e tem 31 lugares sentados.

Algumas perguntas a… Marlene Vieira

Tem-se assumido como um dos principais nomes da gastronomia nacional e, aos 42 anos, concretiza o desejo de abrir um restaurante de autor que é o espelho das suas experiências pessoais e gastronómicas. Em entrevista, a chef Marlene Vieira explica-nos o conceito do seu Marlene, que pode apontar às estrelas (Michelin).

Em que consiste o conceito do Marlene,? E como se distingue dos outros restaurantes do grupo?

É um conceito que tem muito a ver comigo. O próprio nome é Marlene, e a vírgula tem a ver com a viagem, com o que vem a seguir. E o que vem a seguir é a experiência, esta nova abordagem a determinados produtos e receitas nacionais, mas também a história da minha vida, do ponto de vista gastronómico mas não só. É o resultado das minhas vivências e origens. Por exemplo, já tivemos um prato com tremoços, porque a minha avó vendia tremoços e eu cheguei a acompanhá-la.

Quando fazemos cozinha de autor há sempre um certo egoísmo. É uma forma de fazer com que o cliente veja o mundo através da nossa comida. No Marlene, é isso que queremos provocar.

É um restaurante que não é comparável nem ao Marlene no Mercado da Ribeira, que é um espaço de cozinha tradicional onde procuramos melhorar as texturas, nem ao Zunzum, que é um gastrobar onde recriamos os sabores e as técnicas portuguesas. São conceitos com posicionamentos completamente diferentes.

Qual o target deste espaço?

É um restaurante para quem aprecia gastronomia de alto nível e para quem gosta de arriscar nos sabores. Quem for mais “esquisito” com a comida pode ter mais dificuldade, até porque não sabe o menu! O menu não está nas redes sociais, não está nas nossas plataformas digitais. Só é apresentado ao cliente já no restaurante. A única coisa que o cliente sabe é que há um menu com sete momentos e outro com 12.

E que pode mudar!

Este menu já mudou três vezes desde a inauguração, em Abril. Os pratos que hoje são servidos, amanhã podem mudar. Por exemplo, já tivemos lagosta numa das ementas de 12 momentos, mas como a lagosta este ano está muito seca, mudámos para o carabineiro. E, como este, já mudámos muitos outros pratos.

A sazonalidade é um dos vértices da nossa estratégia e é um grande desafio, sobretudo quando se tem estes requisitos ao nível de técnica e de consistência. Há um nível de perfeição que temos de ser capazes de corresponder. Temos essa vontade de nos superarmos a nós próprios, não queremos estar presos a um menu ao longo de seis meses. Queremos fazer coisas fora da caixa, mesmo sabendo que é um risco.

O cliente-alvo é português ou estrangeiro?

A maior parte dos clientes são portugueses. Nesta fase, nota-se a chegada de mais turistas, o que é inevitável, mas esta não é uma zona turística, ao contrário do que se possa pensar. É uma zona de passagem para os turistas. O terminal funciona como um aeroporto e há muitas pessoas que nem sequer saem do cruzeiro.

O restaurante no Time Out Market, esse sim, é mais virado para os turistas que querem conhecer a cozinha tradicional, mas o Zunzum e o Marlene, são mais direccionados para os portugueses.

Este é um projecto especial, onde põe toda a sua alma criativa. Até onde vai a sua ambição com este projecto? Tem como objectivo ser a primeira chef portuguesa a conquistar uma estrela Michelin?

Não sei se é um objectivo declarado. Gostaria de conquistar uma estrela, claro, mas o grande objectivo é ter o máximo de clientes possível, para que o projecto seja sustentável. Isso para nós é muito mais importante do que qualquer prémio ou distinção.

Nesta área, gostamos sempre que novas portas se abram, para que possamos fazer coisas diferentes, seja dentro ou fora do País. Em certa medida, somos embaixadores de uma parte da cultura portuguesa. E quando se ganha uma estrela Michelin, abrem-se essas portas e oportunidades para novos desafios. E isso interessa-nos muito mais.

Ou seja, não é uma obsessão?

Não. Seria, sim, importante para continuarmos a evoluir, porque se não conseguirmos uma estrela Michelin ou outro tipo de atribuições, não vamos ter oportunidade de fazer outras coisas que gostaríamos de fazer. Os títulos, para nós, não são assim tão importantes, queremos é desafios, isso é que nos dá adrenalina. Não gostamos da monotonia. Se ganhar uma estrela implicasse abandonar a nossa filosofia de trabalho, preferíamos abdicar.

Veja algumas imagens de pratos que já foram apresentados no Marlene,

Texto de Daniel Almeida

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