Revolução à vista no marketing farmacêutico
Nem todos os sectores se adaptaram com a mesma rapidez ao marketing digital. No caso do sector farmacêutico, ainda há vários passos decisivos para dar nesse sentido, a começar pela formação/ recrutamento. Isto numa altura em que as gigantes tecnológicas piscam o olho ao mercado.
Texto de Daniel Almeida
Fotos de Paulo Alexandrino
Na era da informação e das redes, o digital veio revolucionar inúmeros sectores de actividade, com as empresas a serem obrigadas a repensar modelos de negócio, processos e a própria forma de comunicar com as suas audiências, sob pena de serem ultrapassadas por outros players melhor preparados (uma boa “fotografia” será o caso da Kodak). E que até podem chegar de outras áreas, criando um ambiente concorrencial algo imprevisível e intenso.
No sector farmacêutico, tradicionalmente mais conservador, a revolução digital começou em áreas core, como a inovação e desenvolvimento de produto – tecnologias como big data, machine learning e inteligência artificial estão a ser aplicadas na investigação de novos medicamentos – ou as vendas. Contudo, essa “revolução” não será tão visível na comunicação com o consumidor final – o paciente. E se as restrições legislativas a que o sector está obrigado não podem ser ignoradas, certo é que também não explicam tudo.
«Somos um dos sectores que continua mais atrasado, principalmente no [marketing] digital, estamos a léguas de outros sectores que também são regulamentados. A [área de] consumer healthcare acaba por já ter uma dinâmica diferente, mas a parte de medicamentos [sujeitos a receita médica] está mais condicionada pela regulamentação. Temos de ser mais proactivos», assumem os responsáveis presentes no mais recente pequeno-almoço debate sobre o sector, organizado pela Marketeer.
De acordo com os participantes, mais cedo ou mais tarde os players da indústria terão que colocar o «desafio interno» de tornar o digital uma componente central das suas estratégias de marketing.
«Assusta um pouco esta inércia, porque, quando olhamos para outras indústrias que passaram por uma disrupção, muitas não se souberam reinventar, e foram ultrapassadas por outros players muito melhor preparados. Sinceramente, já está a acontecer uma revolução. E se calhar não nos adaptámos pelas melhores razões, porque os ciclos de vida dos nossos produtos são cada vez mais curtos, as comparticipações mais baixas, o acesso [das empresas farmacêuticas] aos profissionais de saúde é cada vez mais difícil… e continuamos de forma lenta a desenvolver a “transformação digital”. Temos obrigação de fazer diferente e aprender com outras indústrias que passaram pelo mesmo», reiteram.
Elisabete Alonso (Novartis), Patrícia Gouveia (Janssen-Cilag), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sofia Freire (Angelini) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) são os responsáveis que estiveram presentes no pequeno-almoço debate, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.
Formação é prioritária
O primeiro passo para criar uma “cultura digital” no seio das empresas farmacêuticas passa mesmo por uma mudança interna de mentalidades, o que, parecendo simples, acaba por ser «difícil, porque a resistência da organização é muita, de toda a gente – dos gestores de produto, dos delegados [de informação médica], das forças de vendas… – porque tem medo que a sua função seja substituída e porque é um território desconhecido para a maioria das pessoas», frisam os participantes no debate.
Uma solução para acelerar ou funcionar como alavanca dessa mudança poderá passar por recrutar pessoas com outro tipo de formação, mais ligada a temas como o marketing programático ou a gestão de redes sociais, à semelhança do que aconteceu noutros sectores. No farmacêutico, a maior parte das empresas opta por entregar a gestão das suas plataformas digitais (websites, redes sociais) a empresas de assessoria/comunicação especializadas. Algumas eliminaram a palavra “digital” – «que cria muito atrito» – e assumiram uma estratégia multicanal, que já inclui a equipa de vendas como o cerne das interacções com clientes. Hoje, dentro das companhias que deram esse passo, já existem, por exemplo, equipas de gestão de produto com competências na área do marketing digital, que sabem gerar conteúdo de forma proactiva. E não concebem um plano de lançamento de novos produtos que não envolva o digital. «O primeiro passo é a formação interna, é as pessoas terem competências [no digital]. Se calhar ter uma pessoa dedicada ao digital pesa na estrutura, mas há caminhos intermédios. Depende das companhias e até onde vai o digital – pode estar na força de vendas ao consumidor, no desenvolvimento de produto…», ressalvam.
Em suma, a formação ou o recrutamento de pessoas com conhecimento na área digital deve ser um tema prioritário para as empresas farmacêuticas. Ao fim e ao cabo, defendem, o marketing farmacêutico não é (ou não deve ser) diferente do resto do marketing – e o «[Philip] Kotler não escreve só sobre um determinado tipo de marketing» – ainda que o propósito (prolongar a vida da população) seja distintivo em relação a outros sectores. «A indústria [farmacêutica] dantes era muito fechada. Costumava-se dizer que “uma vez na indústria, para sempre na indústria”. Se vinha alguém de fora, não se percebia muito bem que mais-valia esse activo poderia trazer. Agora, por esta revolução que já existe ou está iminente, precisamos de outras competências e já estamos mais abertos», frisam.
Entrada das tecnológicas
E se, como dizem os participantes no debate da Marketeer, o estímulo para a revolução digital poderá vir do mercado, a verdade é que já existem alguns sinais nesse sentido – pelo menos na área dos serviços e distribuição. Nos EUA, está já em funcionamento o Uber Health, um novo serviço que permite aos hospitais e unidades de saúde agendar transporte para os doentes, enquanto a Amazon tem planos para alargar a sua presença num mercado avaliado em mais de três biliões de dólares. De acordo com a CNBC, a gigante do e-commerce já está a vender medicamentos e equipamentos médicos a clínicas e hospitais norte-americanos, depois de ter assinado parcerias com alguns dos maiores distribuidores daquele mercado, como a Cardinal Health.
De acordo com os participantes no debate organizado pela Marketeer, a hipotética entrada destes players no mercado português poderia constituir uma oportunidade, e não uma ameaça, para as empresas farmacêuticas, na acessibilidade do doente ao profissional de saúde bem como na do medicamento no ponto de venda. «Se o Uber Health ou a Amazon chegassem a Portugal seriam mais uma preocupação da distribuição. Um serviço como o Uber Health até poderia ser uma oportunidade para nós enquanto indústria, no sentido de poder estreitar relações e facilitar o acesso à saúde. Há pessoas que têm de percorrer 200 ou 400 km todos os meses para ir buscar o seu medicamento ao hospital central », explicam.
Contudo, ressalvam, «como todas as oportunidades, precisariam de ser bem monitorizadas, porque de um momento para o outro poderiam deixar de ser trabalhadas de forma equitativa para toda a indústria. Se tivéssemos um Uber que levasse os doentes para os centros que trabalham com uma determinada seguradora, aí passaria a ser uma ameaça, sendo fundamental uma clara regulamentação desta área». Da mesma forma, «no caso da Amazon, a única ameaça que poderia haver seria se fizessem acordos unilaterais da distribuição com alguns players e não fosse possibilitado para qualquer produto».
Os responsáveis garantem ainda que não seria tarefa fácil, mesmo para um player com a dimensão da Amazon, entrar no mercado português da distribuição de medicamentos, tendo em conta que já existem três ou quatro grandes players neste sector, com largos anos de experiência e uma grande capacidade logística. «O grande desafio da Amazon seria bater o tempo. Nós temos entregas de duas em duas horas nas farmácias. É uma rede de distribuição que é muito difícil de bater! A Amazon teria dificuldade em entregar em menos de 24 horas. Não é fácil ultrapassar o nível de distribuição que existe na indústria farmacêutica, quer seja dos laboratórios para os pontos de venda (farmácias, hospitais), quer seja dos hospitais para os utentes», defendem os participantes.
Portugal é uma rampa de CEOs?
Um dos “calcanhares de Aquiles” na comunicação das empresas farmacêuticas é o facto de não ser do conhecimento geral, mesmo a nível mediático, quem são os CEO de muitas destas empresas. De acordo com os participantes no pequeno-almoço debate da Marketeer, isto está relacionado com o facto de Portugal ser uma espécie de mercado intermédio, de passagem em termos de carreira de top management, o que faz com que os directores-gerais não invistam tanto no papel de comunicação externa, mas na optimização da gestão operacional das empresas.
«A indústria farmacêutica tem muita rotação a nível dos CEO, normalmente são estrangeiros e podem ficar apenas dois anos no País. Esta rotação não ajuda a ver um rosto», explicam os responsáveis. «Temos a dimensão certa para tudo: para fazer falhar e para correr tudo bem. Somos sempre um mercado piloto», concluem.
Artigo publicado na edição n.º 262 de Maio de 2018.