O valor da criatividade num território de confiança fragmentada

Por André Zeferino, consultor em Estratégia de Marketing, autor dos livros “Digital Marketing Analytics” e “Marketing Mindset” e co-autor de “Marketing Futureland”

O anúncio de Natal da John Lewis tornou-se uma tradição dentro da própria tradição festiva. É uma referência criativa para a indústria publicitária que consegue estabelecer tréguas na guerra atencional entre marcas e pessoas através de um conceito que “fura” a barreira criada no subconsciente em resposta ao modelo interruptivo.

Tal como refere Annmarie Hanlon, docente de social media marketing da Cranfield School of Management, a John Lewis transforma um anúncio, que à partida queremos ignorar ou avançar rapidamente, para algo que queremos ver. E este ano em particular havia uma expectativa acrescida porque é o primeiro a ser produzido pela agência Saatchi & Saatchi depois de uma relação de 14 anos com a Adam & Eve/DDB.

Os anúncios institucionais de Natal são conteúdos que reúnem muita partilha, mesmo fora da sua época, pelo poder inspiracional das suas mensagens no sentimento colectivo que chega a esta altura do ano marcado pelos acontecimentos mais impactantes no mundo, a que se junta a força genuína do próprio espírito natalício na vida de cada um de nós.

Mas no caso da John Lewis, este anúncio consegue cumprir uma missão verdadeiramente holística, porque, além da mensagem institucional e das vendas sazonais, há também um propósito humanista que visa os seus colaboradores (os Partners – a cadeia de lojas é detida por um fundo em nome dos colaboradores). Esta publicidade ajuda-os a sentirem-se conectados com a marca num momento intenso da sua comunicação e inspira-os a darem o seu melhor durante este período para entregarem aos clientes o próprio espírito John Lewis dentro das expectativas criadas.

Apesar do enorme escrutínio público pela forma intrusiva como a publicidade chega às pessoas, originando conceitos paradoxais como o skip add e o ad blocking, este exemplo da John Lewis recorda-nos sempre que, quando extraímos e separamos a essência do trabalho criativo do modelo tradicional de entrega de inventários, há uma noção clara do seu enorme potencial de valor.

E, embora este valor possa hoje ser medido de várias formas, saliento a recente revisão feita por Paul Dyson (co-fundador da Accelero) aos Drivers of Profitability – factores que impulsionam o lucro da publicidade – num trabalho publicado pela primeira vez há 17 anos, onde concluiu à data que as empresas que se destacam pela criatividade obtêm o melhor desempenho nas métricas financeiras, num pressuposto alinhado com estudos da Nielsen, Binet & Field e McKinsey.

Este ano, numa análise econométrica que envolveu a compilação de 28.000 campanhas globais entre diferentes sectores, para além de trabalhos académicos e vários outros estudos, a criatividade volta a ser considerada como o factor, sob controlo directo dos profissionais de marketing, que mais impulsiona o lucro no investimento publicitário.

Mas o valor da criatividade publicitária está sujeito a um contexto cada vez mais complexo nas condições em que o trabalho de criação de ideias ocorre perante as exigências dos objectivos e prazos, respeitando os briefings das marcas e ajustando-se à dinâmica dos diferentes canais e formatos de media.
Contrariamente àquilo que é o seu ethos, onde a liberdade de pensamento é o seu maior activo, a criatividade aplicada à publicidade está fortemente balizada num conjunto de regras para satisfazer pressupostos, especificações e variáveis.

De acordo com Rod Judkins, professor na Saint Martin’s College of Art, uma das escolas de arte mais importantes do mundo, a criatividade não é meramente uma actividade profissional, é uma atitude genuína perante a vida, que não funciona como um interruptor, que se liga e desliga, porque os criativos continuam a ser criativos quando preenchem documentos, elaboram tarefas diárias ou tratam de qualquer outro assunto mundano.

A criatividade tenta desenvolver uma forma alternativa de pensar aplicada a qualquer desafio. Não havendo condições para estimular pensamentos alternativos na publicidade, todas as marcas passam a comunicar no mesmo sentido, com o mesmo estilo e muito orientadas pela preocupação de não deixarem de fora os temas da moda e a cumprirem ao mesmo tempo todas as suas regras de compliance.

A juntar a isto, há ainda o uso de ad blocking, a crescer anualmente em média cerca de 30%, e que vai representar para 2024 uma perda estimada de receita publicitária online de 8% (54 mil milhões dólares) face ao investimento global, de acordo com o Ad-Filtering Report 2023 da eyeo.

No rescaldo do Cannes Lions deste ano, foram identificados cinco key takeways pela Kantar, que em conjunto representam um território de temas por onde a criatividade pode explorar ideias para impulsionar as marcas e os negócios.

Tendo em consideração que estes tópicos são todos impactantes, não apenas para as próprias marcas, mas sobretudo para a sociedade, pode-se afirmar que à criatividade exige-se que seja – simultaneamente – eficaz (para o negócio); inclusiva (para a sociedade); sustentável (para o futuro geracional); crie entretenimento (para o bem-estar humano); e que seja ainda potenciada pela tecnologia (Gen-AI, que foi o hype desta edição).

Há, portanto, enormes desafios para a criatividade num ambiente publicitário exigente em todas as suas abordagens, e onde, em última instância, vê reduzida a sua capacidade em períodos de contenção económica, apesar de ser justamente em momentos de menor abundância que a criatividade é chamada a resolver problemas.

A criatividade no marketing não começa nas equipas criativas, mas nas pessoas e no mundo à nossa volta com os seus sinais, factos e acontecimentos. É a partir deste contexto que nasce o fio condutor que liga a necessidade ou o problema no mercado à ideia na mente dos criativos que precisa de ser trabalhada sem fricções.

A criatividade será sempre relevante para a humanidade porque promove e impulsiona a inovação e potencia o crescimento pessoal e social de inúmeras formas, desempenhando um papel crucial na abordagem dos desafios e oportunidades do mundo moderno.

Numa era marcada por rápidas transformações, a criatividade surge como um farol de esperança onde podemos encontrar soluções para as alterações climáticas, aproveitar a tecnologia de forma ética, abordar as injustiças sociais, responder às crises de saúde e dotar a próxima geração com as ferramentas necessárias para prosperar.

Publicitar qualquer um destes temas com uma estratégia criativa consistente, e que privilegia a essência do seu valor, irá traduzir-se em anúncios e mensagens que muitas pessoas irão querer ver e perceber qual o propósito que move as respectivas marcas.

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