
O público-alvo nunca existiu. E só agora é que o admitimos.
A expressão mais ouvida por grande parte dos profissionais de marketing é: o meu público-alvo é toda a gente. Até agora, não era. Mas talvez venha a ser.
A definição e segmentação do nosso público-alvo são essenciais para a promoção dos nossos produtos. Num contexto académico, essa definição ganha ainda mais importância, uma vez que a nossa tarefa, enquanto docentes, é dar aos jovens as bases que os sustentarão no mundo real. No entanto, devemos também cultivar neles a noção de que a literalidade é inimiga da criatividade.
Desde que os algoritmos preditivos e a inteligência artificial entraram nas conversas de café, era expectável que a tradicional construção de público-alvo ou buyer persona tendesse a desvanecer-se. A questão que se coloca é: não poderíamos ter antecipado isso?! Provavelmente, sim. Mas andamos distraídos.
Enquanto seres humanos, a nossa evolução assenta, em grande parte, na construção de sistemas sociais, mitos e rituais de coesão de grupo. Estes símbolos servem para unir indivíduos com propósitos comuns, seja pela criação de bandeiras, totens ou mitologias. Servem para organizar e estruturar a sociedade, se falarmos de religiões, governos ou associações; para transmitir valores, conhecimentos e dar sentido à vida, no caso das escolas. No fundo, estas entidades que temos vindo a criar servem para nos explicar, e aos outros, a nossa posição no planeta. No mundo moderno, evidencia-se uma terceira entidade: as marcas. E, claro, os clubes de futebol – mas disso pouco percebo.
Continuamos a idolatrar objetos “sagrados”, mas, em vez de cálices, são caixas de iogurtes, camisolas da moda e pacotes de batatas fritas. Procuramos identidade, segurança e sentido de pertença. Mas, para que me possa sentir seguro e para que possa pertencer, é imprescindível saber quem sou. E, hoje, essa certeza é frágil.
Segundo António Damásio, a construção de identidade dá-se a partir da interação entre emoções, memórias e consciência. O autor argumenta que este é um processo dinâmico e contínuo, resultado da relação entre o corpo, o cérebro e o ambiente. Kaufman explica que grande parte do processo de identificação se alimenta da rejeição do outro. Faz sentido. Para saber o que quero, ou quem sou, tenho também de saber o que não quero ou quem não quero ser. O grande problema é que as ideologias contemporâneas se promovem como ideologias de inclusão, quando, na verdade, são ideologias de privatização. Aceitar por completo todas e quaisquer ideologias diluirá demasiado a nossa identidade, prejudicando o sentido de pertença. Rejeitar por completo outras ideologias tornar-nos-á pessoas/marcas arcaicas, retrógadas e, potencialmente, desprezíveis. Ou aprazíveis pelos motivos errados e para as pessoas erradas.
Há cerca de 100 anos, tudo começava mais cedo. A juventude despedia-se prematuramente das carteiras escolares para abraçar as responsabilidades laborais, impulsionados pela necessidade de contribuir para o sustento familiar. Como consequência, o propósito existencial de cada indivíduo era evidente e raramente questionado. Podemos assumir que essa precoce conclusão sobre o ‘eu’ limitava a plasticidade cerebral destinada à reflexão e à autoanálise, impedindo um desenvolvimento identitário mais rico e diversificado. Os pilares da sua identidade definiam-se de forma bastante precoce, priorizando o coletivo em detrimento do desenvolvimento individual. Isto explica a dificuldade em introduzir novos conceitos ou ideologias a pessoas de gerações anteriores, onde as estruturas de significado são menos propensas a mudanças.
Hoje, temos o privilégio de viver numa era que vê a identidade como algo evolutivo e moldável. A permissão para a aprendizagem contínua possibilita a “destruição” e reconstrução da nossa identidade, um processo que, apesar de enriquecedor, acarreta o risco de crises identitárias caso a reconstrução não seja tão ágil quanto a destruição.
Este estado fluido da identidade torna a análise individual e a monitorização de padrões de comportamento mais complexas. Numa sociedade onde a individualidade está em constante transformação, prever comportamentos torna-se um desafio, que nos afeta desde a gestão de políticas sociais até às estratégias de marketing. Para que essa análise seja mais profunda e precisa, não basta analisar comportamentos. É essecial que compreendamos, em profundidade, as dinâmicas emocionais e cognitivas que moldam o indivíduo. E esta é uma tarefa complexa que evidencia a dificuldade que temos em navegar num mundo onde as certezas quase absolutas deram lugar a uma constante reconfiguração do ser.
Se antes traçar um perfil de consumidor era um exercício de segmentação rigorosa, hoje estamos a assistir à erosão do seu conceito mais clássico. O que antes era definido por demografias, hábitos e preferências estáveis agora dissolve-se num fluxo de dados que muda a cada clique, interação e contexto. O consumidor moderno já não cabe em gavetas bem definidas, e a verdade é que nunca coube. A diferença é que agora temos tecnologia suficiente para admitir isso. O que os algoritmos fizeram foi expor a complexidade e a fluidez das preferências humanas, algo que antes era mais difícil de captar. Não é que a segmentação tradicional tenha sido, ou seja, um erro. Foi uma simplificação necessária numa era com menos dados. Hoje, não é suficiente. É até demasiado redutora, uma vez que é impossível qualquer ser humano analisar os volumes de informação disponíveis sem a ajuda da inteligência artificial.
Para o marketing? Significa que o conceito clássico de público-alvo, no mínimo, deixou de ser estático. A segmentação deixou de ser um exercício rígido para passar a ser um sistema vivo que muda a cada interação. Não estamos a perder o controlo sobre o público; estamos, sim, a perceber que ele nunca foi tão nosso quanto achávamos. E talvez essa seja a verdadeira lição.