O papel da expressão criativa na saúde mental das crianças

Por Mafalda Mota, ilustradora, escritora infantil e fundadora do projecto Heróis Sem Capa

Os números não mentem, mas assustam. Com os mais recentes dados disponibilizados pela UNICEF ficámos a saber que mais de uma em cada sete crianças e adolescentes com idades compreendidas ente os 10 e os 19 anos vive com algum tipo de diagnóstico clínico, a nível de saúde mental. O suicídio é uma das cinco maiores causas de morte dessa faixa etária. Isto, a um nível global. Se quisermos apertar o cerco, basta saber que no Centro Hospitalar do Porto, em 2021, a entrada de urgência na área da pedopsiquiatria aumentou em 95% nos meses de Março, Abril e Maio, comparativamente com a mesma altura em 2019.

Não satisfeitos, podemos sempre espreitar os dados do Hospital Dona Estefânia, que relatam que o número de crianças e jovens que chegaram à urgência e foram acompanhadas em pedopsiquiatria por problemas de ansiedade, depressão ou outro transtorno humoral, aumentou em quase 50% no início de 2021, comparativamente com os dois primeiros meses do ano anterior.

Olhar para dados destes e pensar que isto não é um problema que deve ser discutido desde que a consciência humana começa a ser formada é contribuir para o alargamento das já existentes lacunas na valorização da saúde mental. Dizer que estamos a par do assunto e que é um tema que tem peso não chega. É preciso conversar, desconstruir e eliminar todos e quaisquer tabu – sendo o suicídio um deles. Por elas (as nossas crianças) e por nós (adultos). Mas se conversar sobre isto da saúde mental já é complicado entre adultos (devido a condições geracionais outrora impostas), como podemos fazê-lo com as nossas crianças?

Como ilustradora que recentemente encontrou, na sua profissão, um elo de ligação directo com o tema (e consequentemente o seu caminho), e não como profissional de saúde ou mãe (visto que não sou nenhuma das duas últimas), o meu conselho assenta sempre na utilização da criatividade inata que por vezes teima em esconder-se nos mais profundos confins da nossa imaginação. Com estas três palavras mágicas como mote – “empatia”, “respeito” e “tempo” – o céu é o limite.

Existem inúmeros artigos que defendem o papel da expressão criativa na saúde mental. De acordo com a Associação de Terapia Artística Americana, a expressão criativa reduz a ansiedade, a raiva e a depressão devido aos seus métodos de integração da mente, corpo e espírito. Na área da neurociência, descobriu-se recentemente, através da análise de mapas cerebrais, que fazer arte, seja ela de que tipo for, reduz os níveis de cortisol (a hormona responsável pelo stress), ajudando o artista (ou seja, a criança) a mudar seu complexo estado de consciência para um mais positivo.

Através da expressão artística, as crianças conseguem encontrar uma saída construtiva para as emoções mais negativas e difíceis de lidar. Aprendem, também, uma forma de comunicar mais confortável, que não requer obrigatoriamente palavras. Qualquer exercício de expressão pessoal, seja através da pintura, da colagem, da leitura, da música, da escrita, da dança, etc, ajuda-as não só a lidar com os sentimentos e pensamentos mais avassaladores, como a aprender a aceitá-los como seus, através do tempo que dedicam à sua representação (e à existência de um produto final e concreto, feito por elas). Promover a caracterização destes sentimentos, seja através de uma tela livre, da leitura de uma história que espelhe o que lhes corre dentro ou do preenchimento de uma folha com cores que representem o que estão a sentir, abre um caminho para as crianças poderem começar a falar sobre o que lhes é complicado de processar. É um convite directo para uma discussão que, se calhar, de outra maneira não ocorreria.

No fundo, a arte faz-nos sentir melhor, talvez por ser exactamente tudo aquilo que fazemos dela (não existe uma forma certa de a produzir) e tem um papel fundamental na gestão da saúde mental de todos – as crianças não são excepção. Não é uma fórmula mágica que faça desaparecer o que precisa de ser processado com a ajuda de um profissional, mas garante a abertura necessária para nascer a vontade de querer lidar e conseguir aceitar o que lhe é difícil de compreender. Ter um veículo de transformação do subconsciente em algo concreto, ou que simplesmente as ajude a mudar o seu foco cognitivo durante um bocado, sem qualquer tipo de julgamento ou preconceito, é crucial. Todo o tempo dedicado à expressão criativa ajuda as crianças a encontrarem os variadíssimos níveis de complexidade que fazem delas humanas, e promove sempre o desenvolvimento das suas identidades, ajudando-as a encontrar o seu lugar no mundo.

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