O lápis dos russos

Por Marcelo Lourenço, fundador e director Criativo da Coming Soon

Contam que, nos anos 60, durante a corrida espacial entre os Estados Unidos e a Rússia, os cientistas americanos se depararam com um desafio: ajudar os astronautas a escrever no espaço, já que as canetas tinteiro utilizadas na época não funcionavam em gravidade zero. Pesquisas e mais pesquisas, milhões e milhões de dólares depois, resultaram na invenção da primeira caneta esferográfica da história que, sim, permitia a alguém escrever enquanto flutuava dentro do foguetão.

Os russos não fizeram pesquisa, nem gastaram dinheiro: simplesmente mandaram seus astronautas escreverem com lápis.

Não pude deixar de lembrar dessa anedota quando vi a fantástica campanha “The Dove Code” no Festival de Criatividade Cannes Lions 2024.

A campanha me lembrou o lápis dos russos.

De uma maneira absurdamente simples, “The Dove Code” subverte o algoritmo da Inteligência Artificial: diante das imagens criadas por I.A. que apresentam clichês impossíveis de beleza, com mulheres todas magras, todas jovens, todas loiras – “The Dove Code” propõe o seguinte: quando pedir à Inteligência Artificial que produza imagens de “uma mulher bonita”, acrescente à descrição do seu “prompt” o termo “como num anúncio da Dove Real Beauty”. E isso muda completamente o resultado das imagens: passamos das Barbies de computador para imagens de mulheres mais humanas, mais reais, num ideal de beleza mais real, a tal da “real beauty” que a Dove defende há vinte anos.

A campanha “The Dove Code” foi lançada para celebrar o vigésimo aniversário do conceito “Real Beauty”, talvez a melhor e mais poderosa plataforma de comunicação do marketing moderno. Muito mais do que um slogan, “Real Beauty” é o exemplo perfeito do tal propósito da marca. Mais do que isso: é uma ideia que está mudando a indústria da beleza como um todo.

Desde o lançamento do conceito em 2004, a marca tem feito história em Cannes, seja com o primeiro filme digital (veiculado apenas online) a ganhar o Grand Prix da categoria Filme, o agora clássico “Evolution”, seja com a campanha “Real Beauty Sketches”, que lançou o conceito da “social experience campaign”, ou mais recentemente com “Courage is Beautiful”, a belíssima campanha que celebra os profissionais de saúde durante a pandemia.

Quando vi “The Dove Code” no shortlist na categoria Glass Lions, uma das mais difíceis do festival, pensei: esta campanha vai ganhar tudo. É o tema do momento (a Inteligência Artificial), a marca certa (Dove), um craft impecável (só a utilização da música “Pure Imagination” no case já merecia um Oscar) e uma ideia simples que deixa o sujeito feliz de trabalhar na mesma profissão da malta da Soko, a agência brasileira responsável pela campanha.

Mas, Cannes sendo Cannes, “The Dove Code” não ganhou absolutamente nada, ficando apenas no shortlist.

O que não deixa de ser um alívio.

É a prova de que o Festival de Cannes ainda é feito por seres humanos que conseguem discordar em quase tudo.

Eu achei “The Dove Code” tão genial como o lápis dos astronautas russos, mas os jurados preferiram votar na esferográfica dos americanos.

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