Novo ano, velhos desafios
Depois de um ano recheado de desafios e alterações regulamentares, 2018 afigura-se também como um ano desafiante para a indústria farmacêutica. As farmácias entraram no novo ano em situação de crise profunda e isso pode impactar todo o ecossistema da saúde.
Texto de Daniel Almeida
Fotos de Paulo Alexandrino
O ano passado ficou marcado por grandes mudanças no sector farmacêutico. Temas como as compras centralizadas de medicamentos no mercado hospitalar, a centralização dos dados ou a imposição de limitações aos apoios/patrocínios no Serviço Nacional de Saúde (SNS) influíram de forma determinante no negócio das empresas farmacêuticas, que foram obrigadas a adaptar-se a um novo paradigma. Não obstante, o sector acabou por beneficiar da conjuntura macroeconómica do País, registando uma performance positiva em determinadas áreas de negócio, com especial destaque para a de consumer healthcare (que agrega medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos dermocosméticos, suplementos alimentares, entre outros).
«A retoma económica foi mais visível na área de consumer healthcare. Houve um aumento do poder de compra e as pessoas mostraram-se mais disponíveis para adquirir produtos que não são de prescrição, mas podem melhorar o seu bem-estar», consideram as participantes no 11.º pequeno-almoço debate sobre o sector, organizado pela Marketeer. «São áreas em que o consumidor decide por si, que não têm que ver necessariamente com doenças, e, portanto, as coisas desenvolvem- se mais rapidamente», explicam.
Apesar das boas indicações, 2018 não se adivinha um ano menos desafiante do que o anterior. Na área da saúde, o novo ano começou praticamente com um alerta da Associação Nacional de Farmácias (ANF): mais de um quinto das farmácias portuguesas (21,4%) entraram no novo ano em situação de crise económica, enfrentando processos de insolvência e penhora e “sem garantias de sobrevivência”. Os dados são do barómetro MOPE, do Centro de Estudos de Avaliação em Saúde (Cefar), e não são uma novidade – a crise das farmácias tem vindo a acentuar-se nos últimos anos e impacta todo o ecossistema da saúde em Portugal.
Por isso, este foi o tema escolhido para dar o kick-off ao 11.º pequeno-almoço da Marketeer sobre o sector farmacêutico. Ana Muche (Medinfar), Luísa Silva (Sanofi), Patrícia Gouveia (Janssen-Cilag), Sofia Freire (Angelini) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) são as responsáveis que se sentaram à mesa, no Hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa, para uma conversa que desembocou em dois grandes temas: as mudanças na distribuição e as (des) compartipações de medicamentos.
Distribuição mais concentrada
Um dos temas que promete marcar o ano, no sector das empresas farmacêuticas e da saúde, em geral, é o crescimento expectável dos grupos de farmácias. A braços com uma crise financeira e com uma baixa das margens de lucro, em virtude também de «uma redução grande do preço médio dos medicamentos sujeitos a receita médica», muitas farmácias começaram, nos últimos anos, a organizar-se em grupos ou centrais de compras para «obterem melhor procurement [aprovisionamento] e condições de compra». Em traços gerais, estes grupos negoceiam, de forma centralizada, a encomenda de medicamentos para as farmácias associadas, com condições mais vantajosas. Neste momento, existem cerca de «10 grandes grupos no País, a maior parte deles na zona Centro-Sul», contabilizam as responsáveis presentes no pequeno-almoço debate.
Para as empresas farmacêuticas isto constitui, do ponto de vista do marketing e comunicação, um desafio. Por quê? Porque, apesar de pertencerem a estes grupos, as farmácias continuam a ter grande autonomia para decidir que tipo de estratégias e acções querem ter ao nível do ponto de venda («é quase um modelo de associativismo»). Por outras palavras, as empresas farmacêuticas não têm, em muitos casos, a garantia de que os seus produtos ou acções terão a visibilidade desejada no ponto de venda. Há um «peso crescente de grupos de farmácias», mas «não está a ser um processo tão rápido que nos permita também a nós, do lado da indústria, apostar tão fortemente. Há condições de compra, em grupo, que são superiores, há uma procura do grupo em fazer actividades mais taylormade, mas depois falha, em muitos casos, a implementação [das acções] farmácia a farmácia», consideram as convidadas da Marketeer.
De acordo com as participantes, não é possível, pelo menos para já, comparar o nível de organização dos grupos de farmácias com o dos parceiros na distribuição moderna, como a Well’s, do grupo Sonae. «São modelos completamente diferentes. Uma coisa é negociar com os parceiros de mass market que trabalham parafarmácia de uma forma centralizada, nomeadamente porque as parafarmácias são propriedade da cadeia, e temos as coisas minimamente controladas e podemos analisar kpis, enquanto num grupo fazemos uma acção isolada e não sabemos se será implementada, algo que se prende, em grande parte, pelo facto de as farmácias pertencentes aos grupos terem diferentes proprietários», comentam. «A distribuição moderna entrou, em 2005, neste negócio de centralização, mas tem este background de mass market – uma Sonae já faz isto normalmente, é só um acrescento ao negócio. Os grupos estão agora a dar os primeiros passos», frisam, ressalvando que as farmácias representam cerca de 80% do mercado – farmácia mais área de saúde.
De acordo com as responsáveis presentes no pequeno-almoço debate da Marketeer, é importante que as farmácias estejam atentas àquilo que são as tendências de mercado e que alarguem a sua oferta além dos medicamentos sujeitos a receita médica, procurando introduzir novos produtos e serviços, focados na prevenção e gestão da doença.
Actualmente, nem só as parafarmácias e as empresas de retalho fazem concorrência às farmácias. A jornada do consumidor é, hoje, completamente diferente do que era há alguns anos e a compra electrónica de medicamentos é já, nalguns mercados, como Espanha ou Reino Unido, uma tendência, à medida que players estranhos à indústria (como a Uber ou a Amazon) se intrometem na cadeia de distribuição. E a tendência poderá chegar a Portugal nos próximos anos.
Por cá, a app da Associação Nacional de Farmácias (ANF) já permite, há dois anos, a compra electrónica de medicamentos (mesmo os de prescrição médica, desde que se faça o scan da receita) e a respectiva entrega ao domicílio. Cabe, agora, às farmácias saberem conjugar os mundos online e offline, até porque têm que trabalhar dois targets muito distintos – os millennials e abaixo, e a população em envelhecimento activo. «Viver com os dois targets em simultâneo não vai ser fácil, porque são relações completamente distintas – uns querem tudo online e os outros fazem questão de ir à farmácia», sublinham as responsáveis.
(Des)comparticipações?
Outro tema na ordem do dia prende-se com as dificuldades do Serviço Nacional de Saúde (SNS). No mercado hospitalar, e apesar da tendência macroeconómica de melhoria, existem muitos hospitais públicos a atravessar dificuldades financeiras, as quais se «agravaram» no ano passado. «As dívidas dos hospitais aos fornecedores aumentaram significativamente. Houve injecções de capital, mas ainda assim não chegou», lembram as participantes no debate promovido pela Marketeer. Com o aumento do poder de compra, acrescentam, há cada vez mais pessoas a recorrer aos hospitais privados para evitarem as filas de espera no público. Com efeito, lembram, 40% das pessoas já utiliza o sistema privado (clínicas ou hospitais), seja através de seguro de saúde, ADSE ou pagamento individual.
No que toca às comparticipações de medicamentos, tem havido também necessidade, por parte do SNS, de fazer algumas alterações, ainda que, consideram as participantes – e ao contrário do que pode passar para a opinião pública – não haja, no global, uma redução das comparticipações.
«O que há é uma mudança do portefólio onde se está a dar mais comparticipação. O que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a fazer é reduzir a comparticipação nalgumas doenças que são mais crónicas, como a diabetes (onde o preço médio baixou significativamente), para poder utilizar esse dinheiro em doenças onde ainda há 100% de comparticipação, como é o caso das oncológicas ou auto-imunes. E isto vai ser obrigatório, porque actualmente o nosso sistema de seguros não abrange nem 1/3 dos custos dos tratamentos em doenças oncológicas», esclarecem as responsáveis durante o debate.
Também no regime de comparticipações à inovação há novidades. Em Setembro do ano passado, foi publicado em Diário da República um novo regulamento que prevê que a dispensa dos medicamentos ainda em fase de avaliação passe a ser feita através de Programas de Acesso Precoce (PAP).
Na prática, os medicamentos fornecidos aos doentes nos hospitais e que ainda aguardam uma decisão de financiamento passam a ser cedidos pelas empresas farmacêuticas sem custos para o SNS, desde que haja uma autorização prévia, doente a doente – tal como um estudo ou ensaio clínico.
«Nós temos acesso à inovação. Existe um ruído de que a inovação é muito mais cara do que aquilo que, de facto, é. Nas negociações que se fazem ao nível do Infarmed, Portugal tem sempre dos melhores preços da Europa. São negociações difíceis, em que normalmente conseguimos ter o produto totalmente comparticipado ao fim de dois-três anos. Contudo, durante esse período, a população também não fica sem acesso à inovação», frisam as responsáveis.
A única dúvida que se prende com este programa é que a comparticipação apenas pode ter duração máxima de 210 dias. «O problema é o seguinte: há um medicamento, que pode ser life saving ou não, mas que é uma esperança para uma pessoa que tenha uma doença muito grave, mas chega ao fim dos 210 dias e o que é que acontece depois?», questionam. «Estamos na dúvida sobre como é que isto vai funcionar na prática, é uma legislação muito recente e uma grande mudança ao nível do SNS», concluem.
Artigo publicado na edição n.º 259 de Fevereiro de 2018.