Não é o mesmo

No início de 2000 a agência espanhola SCPF pôs no ar um filme de automóveis sem automóveis. Eu sei, grandes malucos! A única estrada que aparece no filme está agradavelmente vazia. Vale a pena esta nota só para dizer que hoje isso seria impensável – e eu sei, porque trabalho a mesma marca daquele filme do século passado… Mas a crónica de hoje não é sobre como a publicidade era tão mais subtil, cúmplice e envolvente. O filme da SCPF lembrava-nos que uma mesma coisa não é a mesma coisa. Caminhar na areia (calçado) não é mesmo que caminhar na areia (descalço), dormir (no autocarro) não é o mesmo que dormir (na nossa cama num domingo de manhã). O filme acabava com “conduzir não é o mesmo que conduzir” e com o logo da marca vinha uma pergunta em vez de uma afirmação: te gusta conducir?

Porque o mesmo não é o mesmo.

Esta ideia tem-me vindo regularmente à memória. Não é o mesmo.

Um concurso não é o mesmo que um concurso. Quando o procurement tem tanto ou mais peso quanto o marketing, então não é o mesmo.

Contratar talento não é o mesmo que contratar talento. Quando a bitola é a folha de Excel mais do que as folhas do portefólio, não é o mesmo.

Medir e medir não é o mesmo. Medir o sucesso de uma marca pela sua ressonância na cultura popular ou pelas vendas não é o mesmo que medir o seu sucesso em clicks, views ou qualquer outra métrica de performance digital.

A optimização e a previsibilidade, por si, não tornam a comunicação de marca melhor ou mais eficaz a longo prazo. O marketing e a publicidade lidam com a criação de valor intangível, com a imprevisibilidade, subjectividade e até irracionalidade do comportamento humano. Muitos defendem que no marketing, a criação de valor intangível é a maneira mais eficaz de criar valor.

E eu digo muitos, mas talvez, actualmente, não sejam tantos assim. Num mundo em que tudo é monetizado, medido e avaliado, correr riscos e usar a imaginação parece ser o maior risco de todos. Ninguém quer ser julgado por uma decisão que não possa ser racionalmente defendida. E, no entanto, não é aí que a magia acontece.

Uma ideia não é o mesmo que uma ideia.

Uma ideia racional, medida, comprovada, pode funcionar na sala de reuniões, pode defender o director de marketing de qualquer futuro apontar de dedo, mas funcionará na sala de estar? Construirá valor a longo prazo? Construirá reputação? Inscrever-se-á na cultura popular? Fará parte da vida das pessoas, levando à fidelidade, preferência, compra repetida?

Um destes dias o Rory Shuterland, vice-presidente da Ogilvy UK, dizia: os seres humanos não evoluíram no sentido de lidar com informação perfeita. Quer ele dizer que as nossas percepções se constroem a partir de pedaços dispersos de informação muitas vezes aparentemente sem relação directa ou racional com a nossa decisão. A irracionalidade, o golpe de génio, são imprescindíveis à construção de marca. Quem diria que um hambúrguer bolorento podia construir reputação numa marca de fast food?

Marketing não é o mesmo que marketing.

Judite Mota
CCO na VMLY&R

judite.mota@vmlyr.com

Artigo publicado na edição n.º 295 de Fevereiro de 2021

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