
Livro de reclamações ainda é eficaz? Pode “não ser um meio perfeito para a resolução do conflito”, aponta especialista
Há 20 anos, a implementação do Livro de Reclamações transformou profundamente a forma como os direitos dos consumidores são protegidos em Portugal. Desde então, este mecanismo tornou-se um pilar essencial na identificação de condutas irregulares e na promoção da transparência entre empresas e consumidores. Mas será que este recurso continua tão eficaz no contexto atual?
Para explorar esta questão, a Marketeer conversou com Sara Peixoto, especialista em direito do consumidor da Dower Law Firm. Na entrevista, a jurista reflete sobre o impacto deste instrumento ao longo das últimas duas décadas, os desafios da sua versão digital e a sua eficácia na resolução de conflitos. Além disso, aborda as obrigações das empresas, as possíveis sanções e a utilização do Livro de Reclamações como prova judicial. Uma conversa indispensável para compreender o papel deste mecanismo na proteção do consumidor e as oportunidades de melhoria para um futuro mais justo e transparente.
Que impacto teve o Livro de Reclamações na proteção dos direitos dos consumidores ao longo destes 20 anos?
A proteção do consumidor assenta, entre outros, na existência de um sistema que permita a fiscalização das operações, sancionando, desde logo a título contra-ordenacional, os comportamentos que sejam contrários à lei.
O livro de reclamações, cujo âmbito de aplicação foi efetivamente estendido há cerca de 20 anos, passando a abranger um leque muitíssimo mais abrangente de fornecedores de bens e prestadores de serviços, tem precisamente em vista assegurar a existência de mecanismos de defesa dos consumidores e do consumo, permitindo identificar mais facilmente condutas contrárias à lei, as quais serão possivelmente alvo de sanções.
O recurso ao livro de reclamações, agora em formato físico e electrónico, tem vindo a ser cada vez mais utilizado, sendo o papel das entidades de controlo, fiscalização e regulação, a destacar, pela maior abrangência, a ASAE, verdadeiramente relevante no seguimento e tratamento das reclamações.
Considera que este mecanismo tem sido eficaz na resolução de conflitos entre consumidores e empresas? Porquê?
O livro de reclamações assume, neste âmbito, uma dupla vocação. Por um lado, a sua existência e obrigatoriedade de disponibilização funciona como elemento preventivo da violação das regras de consumo. Por outro, a sua utilização e recurso realmente permitem, nem sempre à velocidade esperada pelo utente ou consumidor, reprimir e sancionar comportamentos ilegais dos profissionais.
Sucede que, não obstante estas vocações, e pese embora com a reclamação o profissional tenda a inverter a sua postura possivelmente incumpridora, tem-se vislumbrado não ser este um meio perfeito para a resolução do conflito. Tal poderá suceder, entre outros, na medida em que, pelo menos em alguns casos, a resolução do conflito ou mudança de conduta implicaria a assunção de que fora praticado um ato potencialmente ilícito.
De que forma uma reclamação registada no Livro de Reclamações pode ser utilizada como prova numa ação judicial?
Quando o consumidor ou utente apresenta uma reclamação, seja no livro físico ou electrónico, fica com um duplicado ou cópia da reclamação. Posteriormente, avançando judicialmente contra o fornecedor de bens ou prestador de serviços, poderá juntar como prova documental a referida reclamação.
É, assim, importante que a mesma contenha uma descrição detalhada e objetiva do sucedido.
Quais são as obrigações legais das empresas ao receberem uma reclamação no Livro de Reclamações e que sanções podem enfrentar caso não cumpram?
Tratando-se de livro físico de reclamações, no ato da reclamação o profissional deverá entregar o duplicado da folha da reclamação ao consumidor ou utente. Caso este recuse a recepção, a entidade deverá arquivar a folha com a menção à recusa do reclamante em recebê-la.
Em seguida, e no prazo de 15 dias úteis, o profissional deverá enviar o original para a entidade responsável pela regulação e/ou controlo da respectiva atividade. A reclamação poderá seguir acompanhada da resposta dada ao utente ou consumidor e, bem assim, se o profissional entender, com uma explanação do sucedido.
Tratando-se de reclamação relativa a publicidade terá de seguir o exemplar da mensagem publicitária.
Quanto ao livro de reclamações físico, a lei apenas impõe a obrigatoriedade de apresentar resposta aos consumidores aos prestadores de serviços públicos essenciais, embora seja recomendável que todos o façam.
Tratando-se de reclamação feita no livro electrónico, o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve responder ao consumidor ou utente no prazo máximo de 15 dias úteis a contar da data da reclamação. Nessa resposta deve informar do consumidor ou utente das medidas que tenha tomado na sequência da reclamação. A resposta, acompanhada de quaisquer elementos considerados relevantes, deverá ser, também nesse prazo, remetida à entidade controlo competente.
O incumprimento destas e outras regras é punido a título de contraordenação, o que pode originar o pagamento de coimas, cujos valores poderão ser bastante elevados. Os valores das coimas variam entre os 150,00 euros e os 15.000,00 euros consoante a infracção em causa e consoante seja praticada por uma pessoa singular ou coletiva, sendo a negligência também punível.
Na sua opinião, as empresas respondem adequadamente e dentro dos prazos legais às reclamações registadas? O que pode ser melhorado?
Não. Verifica-se, frequentemente, um incumprimento das regras atinentes ao livro de reclamações. Na prática, temo-nos defrontado com um certo desconhecimento das regras aplicáveis por parte de muitos profissionais obrigados.
Assim, a informação e formação – prática e direcionada aos profissionais – é essencial para procurar sedimentar o cumprimento com todas estas regras.
De outro prisma, atendendo a que os próprios consumidores poderão reclamar/denunciar diretamente, particularmente na falta de contacto, resposta ou seguimento da sua reclamação, junto das entidades de controlo, as infracções, também a sensibilização dos mesmos para esta possibilidade poderá assumir particular interesse.
Com a evolução digital, que desafios e oportunidades trouxe a versão eletrónica do Livro de Reclamações?
A versão electrónica do livro de reclamações permite a apresentação da reclamação sem o constrangimento da deslocação física a um estabelecimento e demais interação. Da mesma forma, permite a fiscalização dos negócios e operações que ocorram e operem totalmente online.
Num comércio e consumo cada vez mais vocacionado para o online foi, e é, manifestamente relevante que os regimes consigam responder de forma adequada.
Um dos maiores desafios consistirá na adaptação dos pequenos e, muitas vezes, mais antigos negócios a este regime e formas de comunicação, o que, aliado ao desconhecimento do regime, motiva um certo incumprimento das regras aplicáveis.
Considera que o modelo do Livro de Reclamações deve ser atualizado ou complementado com outros mecanismos para melhorar a defesa dos consumidores?
Existem, na verdade, vários recursos de tutela e proteção do consumidor. Na nossa opinião, sem prejuízo de se justificar uma maior e mais consciente informatização de todos os procedimentos, a problemática não reside propriamente no número de mecanismos, mas no seu funcionamento.
Cremos que é, por um lado, pertinente o reforço da prestação de informação adequada a consumidores e profissionais, e, por outro, essencial reforçar os recursos humanos e financeiros das nossas instituições responsáveis pela proteção do consumo e dos consumidores.