Já não há heróis
Quando somos crianças, para nós um herói é um arquétipo com regras simples.
Mais tarde começamos a apreciar outro tipo de nuances nos heróis, defeitos com os quais nos identificamos, mas mesmo assim esses defeitos servem normalmente para evidenciar uma outra superioridade moral.
É de heróis que vive a publicidade, é de heróis que vivem as marcas, é de heróis que vive o modelo de promoção de reputação na era do digital social.
É de heróis que continuamos a precisar enquanto arquétipos morais e ideológicos positivos que continuem a definir, embora sem maniqueísmos, que exista um bem e um mal claramente definidos, não obstante o fascínio e a importância das zonas cinzentas. Os heróis não podem mentir, não podem fugir aos impostos, não podem ser predadores sexuais, nem abusadores sociais.
Terry Richardson era o sonho húmido da indústria da moda. Agora é tóxico e Valentino, Bulgari, Aldo, Target, H&M, Vogue.
Weinstein era Hollywood, a marca tácita, que nem precisa de representação física ou manifestações consolidadas para existir enquanto arquétipo do sonho.
Kevin Spacey era um dos mais respeitados actores do mundo, agora é uma liability para o Netflix. A Uber, embora sempre arrogante e distante, era vista como a estrela em ascensão da nova era económica, até começar a ser afectada por questões éticas, revelações de assédio sexual que resultaram na campanha #Deleteuber. E pelos vistos agora vamos perceber que praticamente todas as estrelas e marcas estrela estão envolvidas na fuga global e organizada aos impostos através de offshores, quando nas suas manifestações públicas apresentam um discurso de inclusão e respeito pelas pessoas e comunidades. Nike, Apple, a Coroa inglesa, vários lords e duques, Shakira, Hamilton, Bono e até a muito nossa Madonna. Ah sim, já me esquecia e o Presidente daquele país que se considera ser o fiel da balança do mundo.
Para uma marca a associação a figuras públicas sempre foi uma das formas mais rápidas de alcançar notoriedade. Manter uma política de transparência e correcção social uma maneira de geral goodwill e reputação.
A verdade é que nenhuma destas marcas agora envolvidas, sejam elas marcas-pessoa ou marcas-negócio, desconhecia o nível e a natureza das suas associações.
A verdade é que, ao longo de anos, e por uma decisão calculista de pesar o que mais impacto teria no negócio, estas marcas permitiram determinado tipo de práticas e associações que facilmente poderiam ser escrutinadas para se avaliar a sua pertinência moral e social.
O que se trata, nos envolvidos em escândalos e nas marcas a eles associadas e que se tentam dissociar mal a verdade é descoberta, é de integridade.
É essa a discussão verdadeira que falta ter, para lá das definições de purpose, e dos relatórios de CSR. Qual é o lugar real e a pertinência real de uma verdadeira estratégia de integridade, e qual o governance que irá permitir a sua implementação em marcas com uma pegada económica geográfica e social tão diversa. E tão difícil de gerir de forma coerente.
É preciso uma folha de cálculo que avalie verdadeiramente o peso de não ter integridade, ou pelo menos de não a ter enquanto ninguém está a ver.
É preciso marcas que não explorem o princípio da conveniência para obter perdões pelas suas más práticas. Essa é uma chantagem na qual o consumidor toma parte activa e onde também tem responsabilidade.
É preciso que o contrato que as marcas dizem querer estabelecer com os seus públicos seja honesto, seja real.
É preciso que as marcas queiram ser heróis. E digam a verdade.
A ler:
• Brand Response-Effects of Perceived Sexual Harassment in the Workplace
• Jeremy J. Sierra Texas State University – San Marcos
• Nina Compton New Mexico State University
• Kellilynn M. Frias-Gutierrez The University of Arizona
• https://www.theguardian.com/news/series/ paradise-papers
Texto:Pedro Pires
CEO/CCO Solid Dogma | Presidente do CCP
Artigo publicado na edição n.º 256, de Novembro de 2017, da revista Marketeer.