Texto de Camila Rodrigues Doutorada em Ciência Política pela FCSH-UNL, Investigadora do IPRI
Os resultados das eleições de ontem em Portugal não surpreendem, mas devem preocupar. A leitura atenta das urnas revela muito mais do que uma simples preferência eleitoral: traduz uma crescente desafeição cívica, uma descrença profunda na qualidade das instituições democráticas e na idoneidade dos seus representantes.
Nos últimos anos, a política nacional tem sido reiteradamente abalada por escândalos de corrupção, tráfico de influências, favorecimento pessoal, falta de qualidade governativa e promiscuidade entre interesses públicos e privados. Não se trata de episódios pontuais, mas de um padrão estrutural que corrói a confiança dos cidadãos no sistema democrático. Quando a exceção se torna regra, o sentimento de injustiça instala-se como um vírus silencioso que mina os alicerces do Estado de direito.
Neste contexto de erosão institucional, a política identitária ganha terreno. Como bem observou Fukuyama, a tradicional clivagem entre esquerda e direita, assente em visões divergentes sobre redistribuição de riqueza ou o papel do Estado, vai sendo substituída por uma polarização centrada na pertença e no ressentimento. De um lado, a afirmação de grupos que reivindicam reconhecimento; do outro, uma reação defensiva em nome de uma identidade nacional ou cultural percecionada como ameaçada por fenómenos como a imigração ou os direitos das minorias.
Quando o reconhecimento universal e equalitário da identidade, traduzido no reconhecimento igual de todos os seres humanos, colide com o reconhecimento parcial baseado na nação, na religião, na etnicidade, no género, nos rendimentos, que entende uns como superiores aos outros, emerge uma das principais ameaças às democracias liberais modernas: a política identitária.
Este novo eixo político é particularmente perigoso porque se alimenta de emoções intensas e binarismos simplificadores, frequentemente instrumentalizados por atores que oferecem soluções fáceis para problemas complexos. O terreno fértil para esta radicalização é, em larga medida, cultivado pela má qualidade da governação. A opacidade dos processos decisórios, a impunidade da classe governativa e seus associados e o constante desfile de casos mal esclarecidos reforçam a perceção de que a democracia não passa de um jogo manipulado com pouca adesão ao bem comum.
Importa recordar que a democracia não se esgota no ato eleitoral. A sua vitalidade mede-se na capacidade de garantir igualdade perante a lei, transparência nas decisões públicas e responsabilização dos titulares de cargos políticos. Quando estas dimensões falham, o voto torna-se cada vez mais um gesto de protesto ou de resignação, e cada vez menos um exercício de esperança ou de projeto de futuro democrático.
A banalização da corrupção, o empobrecimento do debate público, a má qualidade governativa e a degradação das instituições não são inevitabilidades históricas, mas consequências de escolhas políticas concretas e de silêncios cúmplices. A democracia não morre de repente, mas esvai-se lentamente, à medida que deixamos de a exigir.