First-party data 2024: A nova bica normal, cheia, curta, pingada ou em chávena aquecida

Por André Zeferino, consultor em Estratégia de Marketing, autor dos livros “Digital Marketing Analytics” e “Marketing Mindset” e co-autor de “Marketing Futureland”

A personalização é uma circunstância com pergaminhos na vida das pessoas e sempre se praticou na sua forma mais simples, sem nenhum aparato tecnológico, em qualquer loja de esquina que faça parte da rotina de alguém.

Basta ir a um novo café de forma repetida para sermos conhecidos pelas nossas preferências e gostos em relação à bica, tudo num processo genuíno, espontâneo e sem fricção, desde que o valor da conveniência – o(s) motivo(s) que nos leva ao café – se mantenha válido.

Com a mudança do paradigma do consumo para ambientes não convencionais, do digital às realidades mistas, a ida ao café tornou-se mais desafiante por razões óbvias, acima de tudo porque retiramos da experiência várias interacções contextualmente tangíveis, singulares e humanas.

Apesar da abundância instrumental e aplicacional que permite hoje às marcas granular as suas bases de clientes a partir de qualquer ângulo, a gestão on-going da personalização num ecossistema com inúmeros pontos de contacto em redor de uma única pessoa é um processo altamente exigente, complexo e proporcionalmente responsável.

Para se atingir a micro-segmentação em escala que permita a relação perfeita de um para um em qualquer realidade omnicanal não basta apenas confiar na capacidade de processamento e de automação dos sistemas porque a qualidade dos dados sempre foi (e continuará a ser) a variável mais relevante em toda esta dinâmica.

Com o fenómeno cookieless finalmente a ter lugar em 2024, através da implementação faseada dos Google Topics (Chrome privacy sandbox), os dados de primeira relação – first-party data – ganharam uma nova vida e tornaram-se numa excelente oportunidade para as marcas requalificarem o tema da personalização e com isso potenciarem o valor da experiência do cliente (CX).

É de salientar que muitas destas marcas não partem do momento zero neste processo pelo facto de já terem implementadas várias iniciativas que ajudam a optimizar esta abordagem, nomeadamente solicitarem aos seus clientes como estes preferem relacionar-se em contexto de marketing, seja pessoalmente, remotamente ou via bots.

O RGPD veio introduzir alguma disciplina neste hábito de pensar os dados do cliente num princípio de responsabilidade que foi aproveitado para reorganizar processos. E, a par de tudo isto, as próprias “falsas partidas” sobre o fim dos third-party cookies nestes últimos dois anos levou a que muitas marcas se antecipassem na criação de toda uma nova cultura de data privacy.

Em 2024 também entrará em vigor a última fase da Lei dos Mercados Digitais (Digital Markets Act) onde os gatekeepers – Google, Amazon, Apple, ByteDance, Meta e Microsoft – estarão obrigados a fornecer meios adequados para o consentimento e tratamento de dados pessoais, a exemplo do Consent Mode da própria Google.

Esta lei determina que, sem as medidas adequadas, haverá uma restrição significativa na gestão de campanhas publicitárias (sobretudo listas de retargeting).

A publicidade digital foi um enorme driver para as tácticas de marketing durante mais de duas décadas, criando até estados de consciência relativamente à sua “obsessão” (exemplo da Adidas em 2019: “we over-invested in digital advertising”), mas iremos entrar numa nova era preparada para um mundo que prioriza a privacidade como requisito mínimo fundamental para alcançar o sucesso em qualquer negócio.

É o momento de repensar estratégias de relação, desde os esterótipos assumidos até às solicitações explícitas de dados, num esforço em compreender as efectivas motivações dos clientes, porque há uma profunda necessidade destes sentirem o valor que recebem em troca das suas informações pessoais:

• Personalização ética – comunicando claramente como os dados são usados e dando controle sobre as suas preferências, garantindo não apenas o devido compliance legal mas excedendo esta expectativa;

• Personalização colaborativa – envolvendo os clientes no processo de personalização das suas experiências em co-criação;

• Personalização Zero-UI – interagindo com dispositivos sem interface de input, através de assistentes de voz, reconhecimento biométrico e outros sistemas inteligentes devidamente personalizáveis de forma responsável.

Construir confiança é crucial nas experiências personalizadas para transmitir uma sensação efectiva de singularidade, afastando o sentimento nos clientes de serem apenas mais um registo numa base de dados, um perfil num segmento ou um cohort num inventário.

As diferentes formas de pedir o café liga espectos culturais de bem servir à genuína afinidade entre as pessoas, culminando numa prática enraizada que permanece como um dos exemplos mais simples da personalização. Toda esta “embalagem” deve continuar a ser o padrão da experiência que a tecnologia deve interpretar, capacitar e ampliar, dentro das limitações óbvias, mas nunca complicar.

Eu pessoalmente gosto da bica cheia, sem açúcar, numa chávena à temperatura normal.

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