Debate: Como vamos tratar da Saúde?

A entrada no ano novo não afastou os receios em relação à sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em particular desde a pandemia de Covid- 19, têm sido recorrentes as notícias sobre a crise do SNS, as demoras nas urgências ou a dificuldade de acesso por parte dos pacientes. Mas, mais do que a falta de recursos humanos ou a escassez de financiamento, o diagnóstico ao sector terá que passar também pela análise dos factores estruturais que põem em causa a sustentabilidade do sistema nacional de saúde como um todo. O tema deu o mote ao mais recente pequeno-almoço debate da Marketeer, onde responsáveis dos mais diversos subsectores da Saúde trocaram impressões sobre o estado actual e o futuro do sector.

Entre os temas estruturais lançados para a mesa, como tendo impacto para a sustentabilidade da Saúde, estão o do envelhecimento da população portuguesa e o do aumento da esperança média de vida. De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), relativos ao triénio 2021-2023, a esperança de vida à nascença em Portugal situa-se nos 81,17 anos, colocando o País em 9.º lugar entre os 26 países membros da União Europeia. Na viragem do milénio, rondava os 76 anos. «Estamos cada vez mais velhos, a viver mais tempo e a precisar de mais cuidados de saúde. Merecemos viver esse tempo em bom», salientam os responsáveis presentes no debate.

E a verdade é que o sector da Saúde, seja através das inovações lançadas pelas empresas farmacêuticas ou da melhoria da prestação de cuidados, tem contribuído largamente para a subida deste indicador. «Os novos 65 anos são os 72, ou seja, aquilo que esperávamos de uma pessoa aos 65 é o que esperamos agora de uma pessoa aos 72. Hoje, dizer que uma pessoa é sénior com 60 anos parece ridículo», acrescentam.

Além do tema estrutural da longevidade, há outros factores que têm contribuído para o desequilíbrio do sistema nacional de saúde. Desde logo, o crescimento dos seguros de saúde. Hoje, cerca de 4,2 milhões de portugueses já têm seguro de saúde, além de existirem 1,3 milhões de beneficiários da ADSE. Contas feitas, mais de metade da população nacional está coberta por um plano ou seguro de saúde. E a frequência de utilização destes produtos tem aumentado consideravelmente nos últimos anos, o que leva a um agravamento dos custos na Saúde.

«Estamos todos a crescer, mas a verdade é que o País continua com 10 milhões de habitantes. Os seguros de saúde, os prestadores privados – e cada vez mais em parceria com o público –, os laboratórios, as farmacêuticas, estão todos a crescer. Mas não sabemos se a elasticidade do nosso País aguenta o que todos estamos a fazer em conjunto», alertam os responsáveis do sector.

Em cima destes factores, que têm adensado a pressão sobre o sistema como um todo, há também uma questão cultural, de mentalidade, que está relacionada com o afluxo excessivo às urgências. «Vivemos num País de 40% de urgências “não urgentes” e onde temos uma média de 67 idas à urgência por 100 habitantes, quando a média no resto da União Europeia são 30 idas», salientam os participantes. «Temos de mudar esta cultura de “hospital bar aberto”, que durante muitos anos se instalou porque não havia tanto foco na prevenção. A saúde não pode ter um regime de “bar aberto”, tem de ser guiada pelos especialistas e não pelo Dr. Google. Esta cultura tem de acabar de uma vez por todas», apelam.

Ana Allen Lima (CUF), Beatriz Paquito (Opella), Inês Pimenta de Castro (Multicare), Luísa Silva (Sanofi), Maria do Carmo Silveira (Médis), Maria Perdigão (Generali Tranquilidade), Marta Cunha (Germano de Sousa), Pedro Silva (ANF – Associação Nacional das Farmácias), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sónia Ratinho (EQA Medicina Integrativa), Teresa Machado Luciano (Unidade Local de Saúde Almada-Seixal), Vera Grilo (Medinfar) e Victor Almeida (Lusíadas Saúde) foram os participantes no mais recente pequeno-almoço debate da Saúde, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

UM PROBLEMA DE (DES)ORGANIZAÇÃO

Muito se tem debatido o tema da escassez de recursos humanos na Saúde. No entanto, os responsáveis inquiridos pela Marketeer lembram que a verdade é que o rácio de médicos em Portugal, nas diversas especialidades, até é superior quando comparado com países de dimensão equivalente. Segundo o Eurostat, Portugal é mesmo o segundo país da UE com mais médicos (560) por cada 100 mil habitantes. Então, o problema não está tanto relacionado com a falta de recursos, mas com a «má gestão desses recursos», defendem.

O que é preciso, advogam, é que haja vontade e coragem política para promover uma «reorganização» do sector, em conjunto com os parceiros do sector privado, tomando as decisões que contribuam para uma melhor gestão dos recursos, serviços e infra-estruturas disponíveis no território nacional. «A maternidade é um exemplo fácil de perceber, porque não estão a nascer mais bebés. Será que precisamos de cinco maternidades na Grande Lisboa? O que é preciso é reorganizar. Se calhar basta termos duas urgências grandes a funcionar. Mas é preciso ter coragem para tomar essas decisões», sublinham.

Assim como apontam assimetrias na gestão de recursos humanos. Insistindo no exemplo das maternidades, uma urgência de obstetrícia, para estar a funcionar, precisa, no mínimo, de dois especialistas. Ora, há hospitais em Portugal que fazem uma média de dois partos por dia e têm dois especialistas e dois internos. Outros hospitais fazem 15 partos por dia, em média, e têm o mesmo número de elementos na equipa.

Feito o “diagnóstico”, que caminhos para promover uma maior eficiência no sector? Desde logo, é preciso optimizar a alocação de recursos, através da referenciação de profissionais, por exemplo. «Quando vamos para a periferia, efectivamente há falta de especialistas. Mas eles não têm de estar lá residentes. Pode haver um hospital central com boas infra-estruturas e referenciar os profissionais », sugerem os participantes.

Também a referenciação nos serviços de urgência será crucial para aliviar alguma da pressão sobre o SNS. O programa “Ligue Antes, Salve Vidas”, que tem sido implementado nas Unidades Locais de Saúde (ULS) de todo o País, é um passo nesse sentido, tendo como objectivo reduzir a utilização indequada dos serviços de urgência ao promover a triagem através da linha SNS 24.

Também a aposta na prevenção e na literacia em Saúde será fundamental, nomeadamente para alertar a população que nem todas as situações clínicas justificam a ida às urgências e numa lógica de promover determinados comportamentos e estilos de vida – e não necessariamente de incentivo à marcação de consultas ou exames. As acções de literacia até se têm multiplicado, com várias acções dirigidas à população em geral, mas geralmente são promovidas de forma isolada pelos diferentes players da área da Saúde e «muito pouco concertadas ». «Temos de perceber que o sistema nacional de saúde somos todos – sectores público, privado e social. Não é só o Estado nem o ónus está só no Estado. Uma coisa é o Serviço Nacional de Saúde, outra é o sistema nacional de saúde. E, portanto, temos de nos organizar todos, contando com todos», frisam os responsáveis presentes no debate.

De igual modo, o reforço das campanhas de vacinação será estratégico para promover a sustentabilidade do sector. As farmácias portuguesas têm sido um parceiro relevante nesta área, desde que integraram a campanha de vacinação contra a Covid-19 e a gripe, funcionando em complementaridade com os centros de saúde. Apesar do sucesso desta medida até ao momento, os responsáveis ouvidos pela Marketeer lembram que continua a haver muita hesitação vacinal, sobretudo em relação à Covid-19, o que é «preocupante». «Há necessidade de promover a mensagem da importância da vacinação. O risco de não vacinar não é uma responsabilidade individual; é colectiva», lembram. A literacia será uma ferramenta crucial para combater a contra-informação que circula em relação às vacinas.

PERSPECTIVAS MODERADAS PARA 2025

Durante o primeiro pequeno-almoço debate da Saúde organizado pela Marketeer em 2025, houve ainda tempo para perspectivar como serão os próximos 12 meses para o sector. E, de um modo geral, as opiniões à volta da mesa denotam um optimismo moderado.

No caso dos prestadores de saúde privados, a tónica para 2025 passa por dar continuidade ao movimento de expansão, pela aposta em novos formatos de prestação de serviços e pela consolidação do negócio através de novas aquisições. «Vai ser um ano de grandes desafios em termos de crescimento orgânico. Um ano com elevada pressão, uma tendência que vem de meados do ano passado. Somos assoberbados de uma forma avassaladora em termos de pedidos para tentar aceder a situações do SNS», referem os responsáveis.

O tema dos recursos humanos vai voltar a estar também em evidência ao longo deste ano, à medida que os diversos grupos privados abrem novas unidades de norte a sul do País e se deparam com a dificuldade de contratar pessoal médico e não médico, em especial fora dos principais centros urbanos. «A palavra- chave é reorganização e funcionamento em rede. Quando abrimos novas unidades, a lógica é sempre de funcionamento em rede, colocando os serviços mais especializados nas clínicas e alta diferenciação nos hospitais.»

No sector segurador, a perspectiva é de manter a rota de crescimento dos últimos anos. Ainda assim, 2025 afigura- se como um «ano de eficiência e de muita aposta na prevenção». «Temos de conseguir que os nossos clientes percebam que se todos fizermos o nosso papel, nomeadamente na adopção de estilos de vida mais saudáveis, conseguimos a médio- longo prazo ter um ganho em saúde e alguma poupança para as situações graves. As seguradoras querem estar posicionadas onde é mesmo necessário e no que pode fazer a diferença na vida das pessoas», ouve-se à volta da mesa.

No caso das empresas farmacêuticas, o momento que se vive é um pouco diferente, uma vez que este é um mercado já maduro e que não tem «tanta margem para crescer». E se no período pós-pandemia houve um crescimento «muito acima das expectativas», no final de 2024 já se começou a sentir «uma certa retracção do mercado e um crescimento menos dinâmico em relação aos dois anos anteriores».

Assim, para 2025, os responsáveis inquiridos pela Marketeer esperam um «ano difícil», em que o sector se vai debater com «muitas barreiras à inovação, que é a forma que a tutela tem de travar um pouco o aumento das despesas com os medicamentos». À semelhança do que aconteceu no ano passado, a perspectiva passa por um crescimento (em valor) mais vincado no segmento dos medicamentos de venda livre (OTC, ou medicamentos over-the-counter) do que nas restantes áreas de negócio.

Apesar de tudo, continuarão a surgir inovações no mercado. «A longevidade, para a indústria farmacêutica, não é uma oportunidade nem um desafio. É a sua razão de ser», concluem.

Texto de Daniel Almeida

Foto de Paulo Alexandrino

Este artigo faz parte da edição de Fevereiro (n.º 343) da Marketeer.

Artigos relacionados