Debate: A JMJ e o milagre da multiplicação

Decorrida a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que durante uma semana encheu a capital portuguesa de centenas de milhares de católicos oriundos de todo o mundo, qual o impacto que o evento teve para o sector do Turismo? Para o segmento da hotelaria, o efeito, de um modo geral, talvez não tenha sido tão significativo quanto seria de esperar. Em face das diferentes opções de alojamento escolhidas pelos peregrinos – desde casas de acolhimento a pavilhões, passando por parques de campismo – os grupos hoteleiros com presença em Lisboa, o epicentro do evento, não registaram um volume de reservas muito diferente do habitual nesta altura do ano, pelo menos nas unidades de quatro e cinco estrelas.

O tema marcou o mais recente debate do sector do Turismo, promovido pela Marketeer – e que decorreu poucas semanas antes da JMJ –, onde os responsáveis de algumas das empresas mais relevantes do sector deram conta de um efeito até “contrário”, uma vez que muitas pessoas optaram por “afastar-se” de Lisboa durante essa semana, devido aos elevados preços verificados. «As outras pessoas que não queriam vir para a JMJ, quando foram comprar o bilhete de avião estava três vezes mais caro e os preços dos hotéis também. Então, não vieram», lembram, acrescentando que este efeito nas reservas foi sentido não apenas na primeira semana de Agosto, mas também na segunda.

Na aviação, o balanço, na antecâmara do evento, era semelhante, não tendo sido registado propriamente um «acréscimo de operação aérea para a JMJ». Apesar da expectativa do sector – que esperava a realização de alguns voos charter em Beja, Porto ou Faro, o que acabou por não se verificar –, manteve-se essencialmente a capacidade regular que estava programada para este período. O que pode ter acontecido é «algum efeito de substituição e, no período da Jornada, um aumento de load factor». Por outras palavras, os aviões a operar foram essencialmente os mesmos, mas chegaram mais cheios ao Aeroporto de Lisboa e trouxeram «um perfil de passageiros diferente».

Mas se não houve um “milagre” imediato da multiplicação dos turistas, os responsáveis inquiridos pela Marketeer concordam num ponto crucial: a JMJ representou uma grande oportunidade de promoção de Portugal enquanto destino turístico e os efeitos serão sentidos a prazo.

Além das centenas de milhares de peregrinos que visitaram o País, muitos deles pela primeira vez, e que vão certamente passar a palavra, a transmissão televisiva do evento (da responsabilidade da RTP) permitiu impactar mais de 500 milhões de lares em todo o mundo, tendo sido divulgados diferentes filmes promocionais de Portugal durante os intervalos da transmissão. Ora, isto representou uma «exposição brutal» do destino, pelo que, afinal, ainda podemos esperar pelo tal “milagre” da multiplicação.

André Araújo e Sá (Hotel Palácio Estoril), Andrea Granja (Tivoli Hotels & Resorts), Bernardo Corrêa de Barros (Associação de Turismo de Cascais), Francisco Pita (ANA – Aeroportos de Portugal), João Pinto Coelho (Onyria Group), Lídia Monteiro (Turismo de Portugal), Luís Capdeville Botelho (Turismo dos Açores), Manuel di Pietro (Taste Catering & Events), Mário Ferreira (PG Hotels & Resorts), Paulo Monge (SANA Hotels), Paulo Ramada (AP Hotels & Resorts), Pedro Ribeiro (Dom Pedro Hotels & Golf Collection), Rita Tamagnini (TAP) e Solange Moreira (Ukino Hotels) foram os participantes no almoço-debate da Marketeer, que decorreu no restaurante Lota da Esquina, do chef Vítor Sobral, em Cascais.

FALTAM 45 MIL TRABALHADORES?

A escassez de mão-de-obra é um problema estrutural do Turismo há vários anos e os dados mais recentes da Associação da Hotelaria de Portugal dão conta da falta de 45 mil trabalhadores no sector. Porém, os responsáveis ouvidos pela Marketeer “estranham” esta estimativa, até porque, segundo dizem, essa contabilização é muito difícil de fazer. Pelo contrário, a percepção à volta da mesa é que o sector está «muito mais estável do que em 2021 e 2022». «Não há nenhum hotel, mesmo no Algarve, que diga que não vai operar porque não tem staff. Se calhar não lançamos é produtos novos», frisam.

De resto, garantem que, com maior ou menor dificuldade, o sector tem conseguido arranjar soluções para manter as equipas estáveis, mesmo durante a peak season. Muitos grupos hoteleiros que têm unidades no Algarve – onde o investimento só em trabalho temporário no Verão «ultrapassa seguramente os 100 milhões de euros/ano» – têm vindo a construir staff houses para colmatar o problema do alojamento na região e fazem o que podem para contornar o da mobilidade/falta de transportes. Outras unidades hoteleiras, o que têm feito é dar alojamento ao staff em alas específicas dos próprios hotéis.

A importação continua, no entanto, a ser a principal resposta do sector para recrutar talentos, com as empresas de trabalho temporário a serem um importante parceiro nesta área e a «darem resposta, quando antes tinham muita dificuldade». Actualmente, há muitos trabalhadores que vêm das ex-colónias, mas também de países como o Bangladesh, Paquistão, Nepal ou Índia. Muitos entram em Portugal para trabalhar na agricultura e depois transitam para a hotelaria.

A entrada em vigor, no ano passado, de uma nova tipologia de visto para trabalhadores estrangeiros também tem sido positiva para o sector, permitindo que as empresas façam contratos com pessoas que, não tendo ainda residência em Portugal, tenham uma “manifestação de interesse”. «Já é um avanço, porque o processo de legalizar um estrangeiro que venha para cá trabalhar é muito complexo e demora muito tempo. A partir do momento em que seja enviada ao SEF uma declaração em que demonstre o interesse em fixar residência em Portugal para trabalhar, já podemos fazer contrato de trabalho», explicam os responsáveis. «Isto tem agilizado muitos processos, quer para as empresas de trabalho temporário, quer para os próprios hotéis», acrescentam.

A integração destas pessoas nas empresas portuguesas tem sido «tranquila». Mas será que o País tem capacidade para as receber? De acordo com os participantes no almoço-debate, algumas regiões, como as costas alentejana ou algarvia, têm tido um grande desenvolvimento ao nível da abertura de novos hotéis e campos de golfe, por exemplo, e terão que receber estrangeiros para trabalhar nas mais diversas áreas. «Mas onde é que esses milhares de trabalhadores vão viver? E, além de casas, vão precisar de centros de saúde, hospitais (não há nenhum com capacidade suficiente para receber mais 10 a 20 mil utentes), escolas… o mercado vai crescer e as infra-estruturas teriam de acompanhar, mas não se vê isso a acontecer», alertam.

Desta forma, explanam, o problema não é preencher as vagas de emprego no sector, mas sim a «integração destas pessoas nas empresas e na sociedade, onde vão viver, que serviços vão ter ao dispor, que educação vão dar aos filhos, que cuidados de saúde vão ter… A partir do momento em que trabalham em Portugal, têm tantos direitos básicos como nós. O principal problema do nosso turismo, em particular no Algarve, é este».

Ainda em relação ao Algarve, os responsáveis pedem que o processo de aprovação da futura dessalinizadora seja agilizado, uma vez que o problema da escassez de água tem sido insustentável para muitos players do sector. O Governo já propôs a construção de uma nova dessalinizadora no concelho de Albufeira, no âmbito do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), mas o processo aguarda luz verde da Agência Portuguesa do Ambiente.

AUMENTO DOS PREÇOS É SUSTENTÁVEL?

Nos últimos anos, os preços nos hotéis em Portugal têm tido uma subida galopante. Se tivermos como referência o preço médio dos vários grupos hoteleiros este ano e compararmos com o preço médio de 2019, falamos de um aumento da taxa diária média (ADR) na ordem dos 45-50%, segundo estimam os participantes no almoço promovido pela Marketeer. No entanto, esta subida dos preços não é alheia à subida dos custos fixos que as empresas enfrentam (por exemplo, na factura da electricidade), entre outros factores. «Este aumento de preço deve-se, em primeiro lugar, ao aumento do canal de vendas directas [desde o início da pandemia de Covid-19]; ao aumento da inflação específica da hotelaria; e ao aumento salarial, uma vez que o salário mínimo subiu desde 2019, de 585 para 760 euros», explicam os responsáveis. Ou seja, os preços médios dos quartos aumentaram «imenso», mas os «custos também subiram brutalmente».

Ao redor da mesa, há ainda quem atribua a subida dos preços médios à requalificação da oferta (embora este tenha sido um ponto de alguma discórdia), até porque o que se tem verificado são alguns movimentos de fundos de investimento que estão a adquirir grupos hoteleiros e que vão requalificar essas unidades. Mas há também quem fale num aumento mais expressivo da procura qualificada, ou seja, do perfil dos turistas – e isso é visível, por exemplo, no aumento dos f luxos de turistas norte-americanos, com maior poder de compra.

De acordo com os participantes, a subida de posicionamento de preço era algo que faltava ao sector, muito por culpa própria. «Temos um defeito que é continuarmos a comparar Lisboa com as cidades de Marrocos. Se formos a Londres, por um três estrelas, com um serviço péssimo, pagamos mais do que um cinco estrelas em Lisboa! Londres é diferente de Lisboa, sem dúvida, mas não é 10 vezes diferente», sublinham.

Cabe agora às empresas nacionais aproveitarem a oportunidade para valorizar a sua oferta. «Portugal tem de estabilizar esta subida de valor, agarrar estes mercados novos que estão a aparecer e que vão continuar a crescer. Podemos cair em ocupação, mas, estabilizando os mercados, estamos num ponto óptimo. E um melhor turista causa menos pegada. É este o caminho», explanam os responsáveis. «Há uma boa oportunidade neste momento para consolidar os segmentos mais qualificados», reiteram.

Em jeito de conclusão, é preciso continuar a valorizar a oferta nacional, trabalhar marca, para mudar a percepção do mercado. «Tem a ver com valor percepcionado, segmentos, qualidade. Obviamente que a escala também é importante, mas acima de tudo está a identidade. O facto de não ter escala não significa que não se possa ter uma identidade reconhecida e direccionada a um target muito específico. Queremos melhor turismo, ou mais turismo?», questionam.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Turismo”, publicado na edição de Agosto (n.º 325) da Marketeer.

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