Da problemática

Certo dia, a meio de uma reunião com uma empresa de contabilidade, que insistia em responder aos meus “isto não está a correr bem” com variações sobre o tema de “o que vocês estão a fazer mal é…”, resolvi perguntar-lhes se tinham a noção do que vendiam, verdadeiramente.

Silêncio na mesa.

«Então, nós vendemos serviços de consultoria especializada em contabilidad-…», começou a dizer o responsável. «Não», interrompi (educadamente, espero) eu. «Isso é aquilo que vocês fazem; mas não acho que seja isso que vocês vendem e de certeza que não é aquilo que eu vos compro.»

«Não estou a perceber», continuou o responsável, claramente baralhado. «Nós vendemos serviços de consultoria esp-…», tentou ele por uma segunda vez. «Não, não vendem», interrompi eu novamente, agora já mais irritado do que construtivo. «Isso é o que vocês fazem, repito. Mas isso fazem vocês e mais mil igual a vocês, pelo que não é isso que eu compro, e certamente não é por isso que vos pago mais do dobro do que é habitual no mercado.»

O contabilista, take 3: «Não, mas repare que os nossos serviços de consultoria especializad-…» E aqui achei que já chegava. «Não, não reparo. Mas vamos tentar um exercício novo: em vez de responderem a mesma coisa a todas as perguntas, experimentem ficar calados um bocadinho e ouvir o que eu vos estou a dizer.»

E pronto, depois disto ganhei embalo e foi uma alegria. «O que vocês me vendem é tranquilidade. Eu não sei de contabilidade, de impostos, de cálculos e fórmulas – e, pior que isso, não quero saber. Em cima disso, odeio (como toda a gente) impostos e problemas com impostos e, portanto, aquilo que vos compro (e a razão pela qual aceito pagar o que pago) é ficar tranquilo, é não ter de pensar em nada disto, sabendo, sem ter de me preocupar, que tudo está devidamente tratado e que a AT não me vai um dia bater à porta dizendo que eu não fiz (ou, inevitavelmente, não paguei) isto ou aquilo e que, por conseguinte, estou metaforicamente f… O vosso negócio é o da tranquilidade, e quanto mais tranquilo eu estiver, menos me custará pagar (mais). Ora se vocês acham que a forma de resolver os meus problemas é trocar a minha tranquilidade por coisas que vos dão menos trabalho (a vocês) e mais preocupações a mim, então a coisa não vai correr bem.»

De novo, silêncio.

Até que o responsável, abanando a cabeça afirmativamente, disse um «percebo, percebo». Obviamente, não percebeu nada, porque três meses depois trocámos de serviços de consultoria especializada em contabilidade.

Serve a (não tão pequena quanto isso) história para introduzir um tema mais filosófico que prático, mas nem por isso menos relevante para quem, como eu, faz disto vida: o que vendemos nós, hoje, na indústria dita criativa? «Isso é fácil: vendemos ideias», dirão vocês. «Lol», respondo-vos eu. É claro que não é isso. Isso, como diria o meu ex-contabilista se tivesse aprendido alguma coisa, é aquilo que fazemos. Mas nós vendemos muito mais (e na maioria das vezes, muito menos) que isso.

Permitam-me elaborar. Vendemos, por exemplo, ética. Ser original não é, regra geral, uma condição minimamente relevante para a eficácia de uma campanha. Aliás, excepção feita a algumas marcas onde a cópia pode ser interpretada com maus olhos pelos seus consumidores, copiar uma campanha bem sucedida noutro mercado seria uma opção razoável e eficaz, que responderia aos requisitos necessários, sejamos criativos, agências, produtoras ou marketeers. Mas não, temos (ou achamos que temos) uma ética que nos faz tentar fazer, além de eficaz e eficiente, algo novo. E assim a vamos vendendo.

Vendemos, de mãos dadas com a ética, ego. O nosso ego, o ego do cliente, do realizador… enfim, vendemos egos, que depois projectamos na indústria e nos seus meios (as revistas, os prémios, os sites, os clubes) e que servem para… enfim, alimentar esses mesmos egos, grosso modo.

Vendemos também poder, estatuto, conforto, arrogância, vaidade, resultados, beleza, fealdade, caridade, pedantismo conceptual e estratégico, corrupção… Enfim, vendemos uma série de coisas, boas e más, além das ideias. A minha agência, por exemplo. A minha agência vende exclusivamente (e é nisso que somos realmente bons) a felicidade de quem lá trabalha. Uma felicidade que depende de uma série de factores (entre os quais a qualidade das ideias e, claro está, a felicidade de quem trabalha connosco), mas, em última análise, é isso que vendemos: a nossa felicidade.

«E para que serve isto tudo, esta conversa toda?», perguntarão os mais pragmáticos.

Para nada, respondo eu. Mas pensar sobre as coisas nem sempre tem de servir para nada. Pensem nisso. E sejam felizes.

Texto: Tiago Viegas
Partner da the Hotel

Artigo publicado na edição n.º 246, de Janeiro de 2017, da revista Marketeer.

Artigos relacionados