Da especialização

Senhora já de certa idade, mas nem por isso menos perspicaz, a minha avó Rosa resolveu um dia perguntar-me o que fazia eu no meu “serviço” (sim, porque com a minha avó Rosa era tudo corrido a serviços e firmas).
A conversa não foi fácil.
“Então, avó, eu faço anúncios.”
“Como assim, anúncios?”
“Então, para a televisão, para a rádio, para as revistas…”
“Ah, reclames. Mas fazes como, filho? És tu que filmas? Falas? Tiras as fotografias?”
“Não, avó, eu escrevo.”
“Escreves o quê, filho?”
“Então, a ideia, os textos, o anúncio.”
“Para quê?”
“Então, para as pessoas que… fazem… coisas… saberem o que… fazer. Mais ou menos.”
“Mas escreves onde?”
“Então, numa folha de papel.”
“E essa folha, vê-se?”
“Sim, quer dizer… não propriamente.”
“Ah, então não fazes mesmo os anúncios.”
“Pois… não. Mas penso neles, avó.”
“Sim, já percebi, filho: és escritor.”
E pronto, assim resolveu a minha avó o meu drama de lhe explicar exactamente o que fazia, e ainda por cima com um título à altura do seu neto: escritor. Sabia muito, a minha avó Rosa. E no fundo, ela tinha razão. Eu não fazia (nem faço, estou em crer) muito. Escrever tinha (e tem) a sua importância; mas essa importância era (e é) no mínimo relativa, no máximo discutível.
Mais que não seja porque isto de criar não é coisa que se faça sozinho. O que não é um problema per se. É só, na minha não muito modesta opinião, um bocadinho aborrecido. Quando eu comecei a trabalhar nesta área perguntaram-me o que fazia; e eu, que queria fazer tudo mas não sabia fazer nada, disse que era copy(writer). Afinal, os copys escreviam e eu escrever, pelo menos, sabia. Pelo canto do olho lá ia vendo um monte de outras coisas que gostava de fazer (direcção de arte, tipografia, realização, fotografia, iluminação, interpretação…) mas que não seriam para mim, até porque eu nunca tive jeito para desenhar. E vai daí continuei a escrever.
E especializei-me. Adiantando a história para chegar ao ponto onde quero… enfim, chegar, com os anos mandei às malvas o ser só copy (metaforicamente falando) e o que era suposto e hoje faço tudo aquilo que me apetece e me dá gozo (uma das prerrogativas de ter uma agência). Incluindo ser copy, claro está (que me dá muito gozo, note-se). Sim, é verdade que não faço tudo bem feito (aliás, faço muito pouco bem feito). E sou o primeiro a pedir ajuda a quem efectivamente sabe, não só para resolver o problema em questão, mas também para aprender mais qualquer coisa.
Mas como mesmo assim sou muito mais feliz, acho que essa prerrogativa não devia ser só de quem tem agências mas de todos os que nela trabalham. Por que não pode um account fazer direcção de arte? Ou um produtor escrever? Ou um motion designer fazer locuções? Eu já vi copys que são realizadores, estrategas que são copys, designers que são tráfego. E então? Para que raio servem os títulos? Sim, a especialização faz falta – o que este mercado não precisa é de mais gente que só sabe fazer pela rama (cruzes canhoto, isso é que não) e, pior do que isso, mal feito (ainda que existam muitos especialistas que mais valia não o serem).
Mas quando falo em especialização não estou a falar de competência; refiro-me ao status quo dos cargos na indústria, que ditam que uma pessoa só pode ser uma coisa de cada vez. É dessa especialização que falo e que digo que faz hoje muito menos sentido do que há 15 anos, quando comecei a trabalhar. Será que precisamos mesmo de estruturas assentes em títulos e cargos? Ou devíamos construir agências e empresas em cima de competências, formação contínua e um desrespeito total pelo que é suposto sermos e fazermos todos? Em que ficamos? Cada um faz uma coisa? Ou todos podemos fazer tudo, desde que com humildade e critério? É uma gaita de uma pergunta, fiquem sabendo. Pior um pouco para quem tem uma agência e sabe que o modelo vigente (cada um faz uma coisa) está mais do que caduco, falido e ultrapassado. Se pudesse perguntava à minha avó Rosa.
Texto: Tiago Viegas
Partner da The Hotel
Fotografia: Paulo Alexandrino
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