A vida que queremos viver
É claro que tudo se faz. E que nos adaptamos a tudo. E que o ser humano é capaz de provas disso nas situações mais inesperadas, conturbadas, desesperadas.
Mas não é disso que trata a vida que queremos viver. A vida que queremos viver não trata de viver em alerta, sem fronteiras sanitárias entre tarefas pessoais e profissionais, em multitasking, em estado de permanente ligação a um qualquer device ou plataforma, no papel de professor, para o qual não temos curso. Não trata disso. Nós conseguimos e até sabemos e até nos sentimos estranhamente contentes com nós próprios por termos percebido que fomos tão rápidos a adaptarmo-nos.
Não somos nós, são os milhões de anos de evolução… Que não aconteceram para chegarmos a isto.
Odeio teletrabalho e tenho muita dificuldade em perceber o extraordinário entusiasmo de muitas pessoas com a ideia de que isto possa vir a tornar-se um feature permanente das nossas vidas.
Para quem trabalha em indústrias criativas e culturais. Ou melhor, para mim, que isto de assumir sectores inteiros é perigoso – o teletrabalho poderá ser útil em situações particulares, mas não é senão uma ferramenta pontual.
As razões (podia encher algumas páginas). Ficam aqui quatro:
1. Evolução e aprendizagem
A interacção física, emocional, comparativa face aos outros num mesmo contexto, é um factor fundamental para a nossa evolução enquanto seres humanos, e enquanto profissionais. Aprendemos a ver, a perceber como o outro faz, a olhar para o ecrã do lado. Perder isto é andar para trás.
2. Tempo
O teletrabalho demora mais tempo que o trabalho presencial – e este é o paradoxo.
Naquilo que faço, a espontaneidade racional – aquela que surge depois de termos um assunto um dado tempo na cabeça, e que nos permite saber na hora o que está certo, errado ou ter uma nova ideia, quando olhamos para o ecrã de um criativo por exemplo – vale ouro.
Sentarmo-nos cinco minutos e resolver é algo que não é possível em teletrabalho. Para mudar seja o que for é preciso fazer uma video call, é preciso formatar o discurso e o momento ao meio. E se isso às vezes até pode produzir um discurso mais ponderado, retira aquilo que não sabemos ainda que pode e irá acontecer – uma ideia, uma correcção essencial, uma nova direcção que não pode ser discutida, e as palavras que se perderam por alguma interferência no próprio meio. É uma seca, a tecnologia ainda não está lá e mesmo se estivesse, seria na mesma uma incrível perda de tempo. Funciona para certas reuniões, na minha opinião, nas de continuidade, porque se evitam deslocações. À parte disso, para mim funciona, mas não resulta.
3. Ideias
As ideias surgem de associações. Nós próprios em frente a um computador reduzimos substancialmente o número de associações que podemos ter. É matemática, apenas.
Às vezes basta um comentário, uma palavra de alguém que está a ouvir a conversa, para se resolver uma campanha ou um projecto. Creio que todos os criativos já passaram por isto e percebem o pânico de perder este contexto.
A dialéctica, com humanos, livros, revistas, coisas que passam na rua, a roupa de alguém que se sentou ao nosso lado na mesa do almoço, ou a forma como fala, o chá que o outro bebe.
Tudo isto é o alimento da actividade criativa. As ideias surgem da nossa apreensão do real e da capacidade de projectar nessa realidade uma narrativa.
4. Integração, motivação, sentimento de pertença, espírito de equipa
Não há equipas em teletrabalho. Não acredito nisso. Organizamo-nos por natureza. Temos a necessidade de encontrar o nosso grupo, o nosso contexto, o nosso território. Fazê-lo é uma parte essencial da nossa identidade individual. As equipas nas indústrias criativas são o coração das empresas. O resto são computadores. Só se consegue criar um sentimento de pertença se houver comunhão, só se consegue solidariedade se sentirmos o outro, só se consegue superação se nos sentirmos motivados. A automotivação é um software cheio de bugs.
Pedro Pires
CEO/CCO Solid Dogma
Artigo publicado na edição n.º 287 de Junho de 2020