“Shortlist 98”, um artigo escrito a 42 mãos
A memória não se perde com a idade. Pelo contrário, vamo-la conquistando com o tempo. Quanto mais novos, menos olhamos para o passado. Só interessa o que vem a seguir, sobretudo se trabalhamos num mercado tão obcecado com a novidade como a publicidade. Mas, com os anos, tenho vindo a ganhar curiosidade pelo que ficou lá atrás.
Vem isto a propósito do Clube de Criativos, que faz 20 anos. O tema deste ano é “Isto não é para velhos” e aí nos encontramos com o novo, ou este não seria um festival de criatividade. Mesmo não sendo nova, fui convidada a participar na exposição “Novas Glórias”, organizada pelo Marco Dias e o Manuel Peres dentro da curadoria das artes. Não sou artista, nunca tive essa urgência, mas quis usar o convite para reflectir e expor sobre a memória. A memória ajuda-me a escolher e a rejeitar ideias. “Isto já foi feito”, “Isso faz-me lembrar uma ideia que vi”. A memória é um critério, mesmo quando é uma memória das curtas. Olhamos para o lado e para o passado recente, mas pouco conversamos com a nossa memória mais comprida. Raramente reflectimos sobre o que se fazia há 20 anos, como se fosse impossível inspirarmo-nos no que não muda e no que já não somos.
Quando o Marco sugeriu “faz o que te apetecer. Pinta, escreve, desenha, fotografa”, eu decidi fazer uma pergunta. “O que achamos agora do trabalho de há 20 anos?” Fi-la a 20 criativos novos de 20 agências: Ana Magalhães/ Y&R Lisboa, André Sousa Moreira/Y&R Madrid, André Alves Afonso/Nossa, César Sousa/Funny How, Francisco Carvalho/Uzina, Freddy Brando/Publicis, Gonçalo Santos/Opal, Gonçalo Martinho/Kiss, Ivo Martins/Fuel, José Gomes/DDB Berlim, Luiz Medeiros/ Comon, Mafalda Quintela/The Hotel, Pedro Santos/JWT, Pedro Vicente/BBDO, Ricardo Lourenço/Jack the Maker, Roberta Batista/FCB, Samuel Simões/Solid Dogma, Sara Pinto/Partners, Sérgio Gomes/O Escritório e Nádia Pinto, freelancer. Nenhum sonhava trabalhar em publicidade. Pedi-lhes para julgar e comentarem as ideias do primeiro anuário do CCP, e com isso fizemos uma shortlist com 20 anos. Fica a opinião deles sobre a publicidade em 98, escrita a 42 mãos. As duas mãos que sobram são as minhas, que juntaram os comentários de todos no texto abaixo. Obrigada às novas glórias, ao Marco Dias e ao Manuel Peres. Este olhar para trás ajuda-me a ver para a frente.
Shortlist 98
“1998 foi o ano da Expo, da luta contra a SIDA, dos rolos de filme Kodak, que tiravam no máximo 36 fotografias, de Timor, do pacman e do tamagochi, do Diácono Remédios e do Alentejo, com a loucura do dia-a-dia, e o “Boa tarde, Ti Manel”. Já nesta altura, a publicidade era um reflexo da sociedade. Foi um ano que produziu ideias que 20 anos depois continuam na nossa memória colectiva, mesmo não existindo na altura redes sociais, truques digitais nem ondas virais. Não havia uma internet cheia de referências, não existiam likes como critério de qualidade, mas havia boas ideias, simples, inteligentes, relevantes, capazes de inspirar gerações de criativos e ainda hoje serem recordadas com um carinho imenso pelos consumidores da altura. Tal como existem hoje. Afinal, uma boa ideia é uma boa ideia, e por isso não envelhece. Em 98, faziam-se trocadilhos com bilhas e campanhas de headlines.
Piadas com alentejanos e mulheres “boas”, em lugar de mensagens mais inclusivas e mobilizadoras como as de hoje. O público ainda não tinha voz. Também se faziam trocadilhos visuais e pós-produções avançadas para a época, como as alfaces das Amoreiras, que agora nos parecem muito toscas. Em 98, o Photoshop não fazia milagres. A publicidade fazia-nos rir, e isso lembra-nos que ela tem esse poder. A Galp era uma marca com humor e fazia anúncios com o Diácono Remédios, e a Olá já andava a tentar convencer-nos a comer gelados no Inverno. Foi um ano de ideias que não envelheceram, apesar dos seus layouts estarem hoje cheios de rugas. Ainda só existiam anúncios com formato de anúncio, e muito deles podiam existir hoje, talvez vestidos de banner ou de post de Facebook. Já nesse ano, o que o CCP premiava eram sobretudo boas ideias. Tal como agora, existiam grandes ideias com um forte insight detrás, materializadas num copy e numa direcção de arte fora-de-série, e produção ao mesmo nível. A internet dava os primeiros passos, por isso era preciso dizer às pessoas para irem lá ver as marcas. Faziam-se anúncios de imprensa para divulgar a página Web da CP.
Na profissão, não tínhamos todas as ideias do mundo disponíveis à distância de um clic. Os festivais ainda tinham poucas categorias, o que nos dá a sensação de que, por muito que elas agora se multipliquem, o que continua a prevalecer é a qualidade de uma boa ideia. Algumas ideias eram originais na altura, mas tornaram-se uma fórmula que agora rejeitamos. Algumas marcas tinham coragem de falar mal de si, como o queijo Limiano, o que parece impossível de aprovar hoje. Já existia publicidade com insights, alguns com tanto valor, como os 5 km/hora da Mercedes, que vieram a dar ouro em Cannes a outro país uns anos mais tarde. O craft era linear, fotografia em imprensa e outdoor, filmes a contar histórias “one shot” e havia zero necessidade de criar narrativas que pudessem crescer noutros suportes e trazer o público para a conversa. Foi um ano de enorme liberdade criativa, sem o machado das redes sociais encostado ao pescoço 24/7. Ainda não se usava a palavra storytelling. Havia miúdos que gravavam anúncios em cassetes. Quem era criança achará que os mais velhos terão vontade de dizer agora “no meu tempo é que era” quando olham para 98. “Foi um ano em que a publicidade ainda tinha tomates.”
Texto de Susana Albuquerque
Directora criativa Uzina
Artigo publicado na Revista Marketeer n.º 262 de Maio de 2018