Ricardo Monteiro: «As empresas estão sujeitas à tirania dos dados recolhidos»

«O Marketing como arte e como uma profissão que era exercida por pessoas com talento está em vias de desaparecer.» Quem o garante é Ricardo Monteiro que na 23.ª Conferência da Marketeer deixou um alerta a todos aqueles que trabalham com marcas, sejam eles marketeers, publicitários ou designers.

Durante a sua intervenção no encerramento de uma conferência que se debruçou sobre os Elefantes na Comunicação, o ex-presidente global da Havas Worldwide e actual comentador da CNN, lembrou que há muitos anos, quando começou a trabalhar nesta área, o que se procurava num marketeer era saber se ele tinha o pulso das pessoas a quem era suposto vender os seus produtos ou serviços. Apesar de à época já haver sondagens e pesquisas de mercado, eram feitas por amostragem e, portanto, havia uma margem de erro bastante grande e os dados requeriam interpretação pessoal. Os directores criativos e de estratégia eram capazes de transformar essa informação num insight poderoso, conta. E era daí que nasciam extraordinárias campanhas. Ou se fosse uma pessoa que trabalhasse numa empresa «poderia fazer nascer à volta desse insight uma pequena obra de arte que com sorte e muito trabalho se transformava numa marca forte».

Voltando ao momento presente, Ricardo Monteiro sublinha que, agora, o que acontece é que as empresas estão sujeitas à tirania dos dados recolhidos. «O advento da era digital, trouxe-nos acesso a uma informação de tal forma ampla que é impossível ignorar aquilo que se sabe, todos os dias e que todos os dias se aperfeiçoa ou se deteriora. Esta proliferação de fontes de informação faz com que, de repente, estejamos muito atentos a minorias muito vocais.»

E se no passado se partia de verdades partilhadas, que não se questionavam, hoje essas minorias vocais quase que impõem a sua ditadura advogando ideias que são contrárias às verdades que antigamente eram partilhadas por toda a gente, sublinha. E lembra o boicote da Coca-Cola à África do Sul no Apartheid. Hoje, crê que a marca não ousaria fazê-lo porque haveria certamente uma minoria supremacista branca que se oporia de tal forma que ela temeria pelo seu negócio no resto do mundo.

«Estas minorias, muito influentes, vieram transformar o exercício do marketing da simples intuição (sobre aquilo que conhecemos sobre as sociedades que nos rodeiam em qualquer coisa que seja rentável) para uma análise absolutamente exaustiva dos dados que nos chegam da mais pequena frase que é posta na caixa dos comentários e que é imediatamente transformada e potenciada.»

Ricardo Monteiro acredita que ainda estamos numa fase de transição para uma nova era. E se os profissionais (como se viu nos restantes painéis da conferência) ainda falam de um mundo que está em morte lenta, ainda acreditam que se pode controlar as marcas, que estas podem falar a uma voz e que há um trilho comum, o ex-presidente global da Havas Worldwide acredita que a única coisa que se pode controlar é o tweet ou a primeira mensagem. A partir daí sai das mãos do seu emissor, seja ele o marketeer, a agência ou o dono da marca. A partir daí essa mensagem transforma-se em qualquer outra coisa com os muitos públicos-alvo (que compara com o passado em que era apenas um). «Esta difusão dá uma esquizofrenia absoluta das marcas e as marcas estão a perder o seu valor.» E este, para Ricardo Monteiro, é um dos elefantes na sala dos quais não se fala: «As marcas, sobretudo as de produtos de consumo, estão em perda de valor muito acelerado.» Porquê? Na sua opinião por haver uma atomização muito grande de todas as pessoas e das suas opiniões. Foi dada às pessoas a capacidade de perceberem – até pela atomização dos circuitos de distribuição – o valor das marcas em função das necessidades que as mesmas suprimem, recorda dando o exemplo da Gillette que chegou a dar o nome ao tipo de produto, mas que perdeu o seu valor quando os consumidores perceberam que as outras lâminas cumpriam também a promessa.

E entre as marcas, lembra Ricardo Monteiro, há também aquelas que confundem as suas missões como a Ben & Jerry’s que processou a Unilever (que é a sua dona) por esta não a ter deixado fazer uma campanha de apoio à Palestina. «Porque a Ben & Jerry’s está a dar ouvidos a uma minoria que – independentemente da nobreza do propósito – pode influenciar a percepção da marca que é vista como activista. Não é uma marca de gelados. É uma marca de causas.»

E se é verdade que as marcas e as empresas têm de ter os seus princípios e se não os respeitarem pagarão o preço, também o é que o propósito de uma marca é vender. O profissional acredita que esta lenta morte das marcas deriva da confusão dos seus propósitos.

Ricardo Monteiro acredita que as marcas como nós as conhecemos, aquele produto feito no laboratório das nossas mentes, com os poucos dados que tínhamos – que depois se transformavam num logotipo, numa campanha de publicidade – e que ainda é muito do que nos chega até hoje, estão a desaparecer e a perder o seu valor para o consumidor, que cada vez mais se desloca para a última apresentação nicho que aparece.

«Esta deslocação das vontade das pessoas, dos pequenos grupos que evidenciam que têm uma voz superior àquilo que é realmente a sua representatividade na sociedade e a perda de verdades comuns que todos partilhamos – sobre as quais se construía a oferta para o público – faz com que estejamos num momento de transição», reforça.

Um exemplo típico da época de transição é, segundo Ricardo Monteiro, recorrer-se à IA, a todos os inputs e dados que chegam às marcas, tentar-se analisá-los e sintetizá-los, mas depois exercer o espírito crítico por humanos.

A isso seguir-se-á uma nova hierarquia em que «o livre arbítrio e a análise pessoal das coisas vão desaparecer. E nós vamos fazê-lo com vontade.»

Essa nova idade – que se desconhece como virá a ser chamada pelos linguistas – «vai chegar com o nosso aplauso porque tudo na nossa vida do dia-a-dia vai realmente ser mais fácil. E entramos sempre por estes caminhos pela lei do menor esforço. Procuramos o que é mais fácil e nos dá mais conforto».

Ricardo Monteiro acredita que a IA vai quase suprimir as tentativas humanas de levar qualquer coisa ao mercado. Haverá nichos do “isto foi concebido sem recurso a IA”. Mas na maioria das empresas que se ligam a mass market, vai desaparecer a profissão do pensador de marketing e daquele que interpreta os dados. Porque, à partida, esses virão interpretados, lembra.

Do homem no centro para a máquina no centro

A confirmar-se o cenário, a época em que vivermos – a do antropoceno em que pela primeira vez a vida na Terra tem por centro o Homem porque ele exerce uma influência de tal maneira desmesurada sobre o planeta que já não é a centricidade de outros factores que prevalece – vai durar muito pouco tempo. «Vamos passar para uma época em que seremos geridos por sistemas. Mas atenção: de forma voluntária. As pessoas não se vão revoltar. Vão aceitar como sendo um facilitador», sublinha.

E voltando ao marketing lembra que a dificuldade que hoje ainda existe é a de não se conseguir conceber um produto e uma marca para cada um dos 50 mil nichos que existem e fazê-lo de uma forma economicamente aceitável para a empresa. O que a IA vai permitir é que as empresas explorem cada um destes nichos / grupos-alvo de uma forma economicamente eficiente, sem ter que ter o chefe de produto para produtos que vendem meia dúzia de unidades, explica, sublinhando que caminhamos para a hiperindividualização e a hiperpersonalização.

Ainda assim, Ricardo Monteiro acha que as pessoas não devem desesperar. E deixa uma luz: «A única maneira de impedir a passagem do antropoceno para essa era da IA a comandar as nossas vidas, em todas as suas acepções, é realmente resistir a que assim seja. Resistir de forma cívica e democrática.» A quem trabalha em Marketing recomenda que não caiam na tentação de terem a IA e depois aplicarem o critério humano. «O accionista colocou a IA na função de dois analistas. Depois vai pô-la a fazer tags, depois acaba com a agência…», alerta. De tal forma que o talento e a humanidade deixam de ter espaço para se exprimir. «O Marketing não morreu. Estamos numa fase de transição e cabe a cada um resistir de maneira informada.»

Texto de Maria João Lima

Foto de Paulo Alexandrino/Paulo Petronilho

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