Revolução e contra-revolução

Pedro PiresNo meu último artigo, escrito durante os motins de Londres, afirmei que a Levi’s teria reconsiderado a colocação do seu anúncio da campanha Go Forth, como medida de precaução por causa desses acontecimentos.

Incluído na campanha de apoio aos pioneiros modernos, aqueles que na sua actividade conseguem influenciar e inspirar as comunidades onde vivem. Passada essa semana, o anúncio lá foi colocado no ar, prolongando os acontecimentos que tomaram conta das ruas de Londres e o metaforicamente espírito de proto­-revolução que paira sobre a Europa e o mundo ocidental (porque no Oriente, a revolução, embora televisionada, saiu mesmo para a rua).

Depois de Walt Whitman, cujos poemas são considerados o expoente máximo do espírito original do pioneiro americano, a Levi’s deu sequência à sua campanha com um poema de Charles Bukowski, que eleva a esperança a uma condição individual indispensável para o prazer pela vida e os outros.

Para que o espírito de campanha não fosse apenas um exercício publicitário, a Levi’s trans­formou-o numa acção global de apoio aos pioneiros modernos, aqueles que na sua actividade particular conseguem influenciar e inspirar as comunidades onde vivem. Apoia indivíduos com uma ideia, contribuindo financeiramente e com logística para que ideias, como o financiamento anual de uma escola de crianças com sida na África do Sul, ou o combate à iliteracia nos EUA, possam ver a luz do dia. Mas antes da esperança, vamos dar um pouco de espaço ao cepticismo.

O que explica esta atracção irresistível da publicidade de moda pelo contrapoder, e que vai para além da frustração revolucionária dos criativos que a fazem, que vão compensando a sua falha de capacidade de influenciar o mun­do? O que explica este endeusamento de per­sonalidades alternativas que por certo não ar­ranjariam trabalho no universo corporativo das marcas que os promovem? O que conseguem estas marcas com a apropriação dos valores e da estética revolucionária, nessa capacidade que o capitalismo tem de transformar tudo num seu produto, numa sua forma de expressão?

Pode argumentar-se que é esta proprie­dade, que esvazia de sentido e conteúdo o que toca, que faz da publicidade a principal arma do sistema económico em que vivemos. O ca­pitalismo precisa de temas, de conteúdo a par­tir do qual se criem movimentos de consumo, e de adesão. Vive de alimentar a sociedade de utopias e imagens com as quais precisamos de nos identificar para conseguirmos identificar o nosso lugar no mundo. Todos sabemos isto, ou pelo menos desconfiamos. Quem pretende en­tão enganar uma marca como a Levi’s? Uma das maiores organizações económicas mundiais, que terá tudo a perder com revoluções, apela à rebelião e à autodeterminação, quando nos seus sonhos todos vestimos o mesmo. Hmmmm, há qualquer coisa de forçado aqui.

A contra-revolução seria, neste caso, a re­cusa do público em utilizar os seus produtos, na medida em que descobriria uma intenção eco­nomicista, na criação de tais narrativas. Mas o que sucede é o contrário. Uma vez criadas, as campanhas e as imagens que as compõem estabelecem-se enquanto obras artisticamente executadas, e representem ou não um produto, que por milagre passa a incorporar esses valo­res, elas representam-se a si próprias enquanto edifícios ideológicos e manifestos estéticos. E isso acaba por seduzir o céptico crítico que há em nós.

E esta é a minha ingénua visão da esperança.

A verdade é que estes exercícios podem ser usados para o que quisermos. Embora reflexo do capitalismo, a publicidade é uma construção que, embora imperativa a maior parte das ve­zes, é também interpretativa. Como diria Paul Smith, podemos encontrar inspiração em todo o lado. E é esse o caso que me interessa, porque a verdade é que uma imagem não tem dono. Ela é propriedade de quem a vê. E pode ser utiliza­da para qualquer finalidade, tenhamos nós ca­pacidade de a recontextualizar. E este é o lado revolucionário a que não resistimos. A imagem é revolucionária em si. E é a essa construção for­mal a que aderimos e não ao que analiticamente ela poderá representar. São os seus signos que seguimos, não a sua semântica.

Há vários anos que Vhils deixa pelo mundo as imagens que o habitam gravadas nas paredes degradadas de edifícios ou muros, atribuindo personalidade ao inanimado e uma nova di­mensão à expressão street art. O seu estilo ori­ginal e característico, pioneiro e ousado valeu­-lhe, além do reconhecimento mundial, um convite da Levi’s, para assinalar a sua presença na última Bread & Butter de Berlim.

E quando vejo a campanha da Levi’s e a utilização da arte de um português com talen­to, para homenagear pioneiros modernos da cidade de Berlim, vejo um trade off, que não sendo equilibrado e justo, vai permitindo que as tais “marginalidades” encontrem o seu lu­gar no mundo, que, no processo de potenciar o seu produto num momento ideologicamente delicado, as marcas compram o seu passapor­te, dando visibilidade a quem tem capital junto das massas. E isto é sinal de um sistema que, embora desequilibrado, vai conseguindo criar espaços para que todos tenham uma voz.

Vhils foi revolucionário no que já conse­guiu, emergindo das margens de uma arte já de si marginalizada, de um país periférico para espaços de culto do mundo do branding e da moda, sem perder as características essenciais da sua arte. Foi nisto que nos quiseram fazer acreditar até hoje. A essência do capitalismo é um sistema onde um indivíduo é igual a uma revolução. Mas a verdade é que o seu truque foi sempre saber responder a essa afirmação com outra pergunta. Contra quem?

Na falta de uma resposta clara, resta-me in­centivar a arte. Go forth, Vhils.

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