Covid-19 e as crianças
Em primeiro lugar, cada criança é um ser único, com um conjunto de vulnerabilidades e resiliências. O que derruba um, mal atinge o outro.
Há factores exteriores que a protegem ou, pelo contrário, ampliam o impacto. A família, uma organização complexa de interacções emocionais, anima ou deprime conforme os dias ou momentos. Os actores são muitas vezes múltiplos, e o guião da peça que se desenrola não foi previamente por eles lido. A dinâmica é tão complexa como a trajectória errante da esfera de uma máquina de “pinball”.
O equilíbrio dos pais, individual e na relação entre si, tem reflexos inevitáveis no “bunker” em que cada casa se transformou, no geral ampliando tensões e divergências, por haver menos espaço para desanuviar. Após o confinamento, na China subiu consideravelmente o número de divórcios, enquanto se espera que o de nascimentos diminua. Por alguma razão é.
Falar em crianças é o mesmo que falar em adultos, a saber: pessoas com mais de 18 anos. O olhar sobre o mundo e a vida sofrem tanta transformação em cada década percorrida, que o conceito de adulto pouca informação dá, para além de sabermos terem em comum a permissão de obter carta de condução (e mesmo assim com limites).
O impacto da Covid (se o houver, e for significativo) não será seguramente o mesmo na infância, idade escolar ou adolescência. O impacto da pandemia foi muito importante para a Ciência, porque trouxe para debaixo do olhar público a sua importância e limites. Todos nós olhamos com ansiedade para as peças jornalísticas onde astronautas em terra manipulam pipetas e tubos de ensaio, sabendo que por detrás daqueles gestos se encontra a nossa salvação. Por outro, respostas a perguntas tão simples, como quando devemos usar máscaras, tiveram respostas num ziguezague aparentemente incompreensível. A Ciência é assim, tal qual as pessoas, uma obra incompleta, sempre em transformação.
Impacto psicológico nas crianças
Creio ser impossível determinar com segurança o impacto psicológico da pandemia na população infantil, e mesmo que o conseguíssemos em termos gerais, essa informação de pouco serve para compreender como afectou a Joana ou o Rodrigo em particular.
Por outro lado, desconhecemos a duração do impacto, se o houve. A morte de um pai com Covid-19 terá um efeito permanente; falhar a festa de anos de uma BFF (“Best Friend Forever”), embora acompanhada de lágrimas e protestos, será esquecida na semana seguinte.
Gostaria de vos apresentar Ciência, ape-nas vos vou transmitir impressões. Quem disser que consegue melhor do que isso na data em que vos escrevo, mente o é ignorante.
Sinto-me passageiro do “Titanic” a transmitir as consequências do desastre para os restantes passageiros do paquete. É bom e mau: pode-se ser observador e em simultâneo objecto da experiência?
Creio que uma aproximação ao conhecimento do impacto deste episódio só se pode compreender dentro de alguns (muitos?) anos, talvez através das memórias de quem por ele passou, e isso não é ciência mas literatura.
Comecemos pela infância. Imagino a ansiedade de uma mãe perante a possibilidade de transmitir a doença à sua emanação mais frágil. Ambos desprotegidos. Os anticorpos que a mãe possui são durante sete meses o seguro de vida para o filho que acabou de nascer, excepto que, nesta altura, a vulnerabilidade é de ambos. Imagino cada casa como se fosse uma cidade sitiada, porque pode estar contaminada toda a ajuda exterior. Quem vai às compras, quem traz os medicamentos, pode transportar nas mãos ou no hálito, o inimigo. Se a mãe é portadora, difícil será o aleitamento. E o bebé não poderá ver o seu sorriso, salvo-conduto para a felicidade, ou o movimento dos lábios quando diz: “ma-mã”, os primeiros passos para a língua que, por razões compreensíveis, se chama de materna. Meia face amputada pela máscara, qual a consequência dessa subtracção?
Meses mais tarde é a idade do infantário. É uma instituição relativamente recente. Não existia quando eu nasci, e não foi criada para o bem-estar das crianças, mas para resolver o conflito de interesses entre a mulher profissional e a maternidade, e para permitir à família um outro desafogo económico pela contribuição financeira da mulher, que permitirá mais tarde o acesso às aulas de música, natação ou ballet. Para não falar da realização profissional, direito que a todos assiste, independentemente do género. Para algumas mulheres ficar mais tempo em casa com os filhos é um bem, para outras nem tanto. Diria que, para as crianças até aos três anos, é uma benesse, mas não tenho a certeza.
O período pré-escolar é uma espécie de aquecimento para atletas antes de entrarem em competição. Ensaiam-se letras e números na esperança de que isso diminua o número de erros no ditado que, por ora, ainda não contam. Também é verdade que substituem a tribo de primos e vizinhos onde outrora se esgrimiam egoísmos e cedências, essenciais para o ensaio da vida em sociedade. Partilhar, ceder a vez, gerir frustrações, apenas é possível na experiência de viver interpares. Se não houver irmãos, esse exercício é amputado durante alguns meses. Qual o impacto? Não sei.
Chegados ao 1.º ciclo, pia mais fino. A maior parte dos pais têm competência para atenuar a falta presencial dos professores. O que não têm, seguramente, é o tempo e vocação para tal. É que ser em simultâneo mãe ou pai e professor resulta num acréscimo de trabalho que os adultos sentem, mas não vem nos jornais.
Quanto mais gente em casa mais comida, mais limpeza, mais conflitos para gerir e, quando, em simultâneo, se tem de trabalhar “à distância”, a exaustão com o passar dos dias é inevitável. Curiosamente, a tomar como verdadeiras as estatísticas dos EUA, a participação dos homens nas tarefas domésticas aumenta significativamente, com um pequeno detalhe: eles ajudam muito menos do que julgam, a avaliar pela opinião das respectivas mulheres.
Conheço melhor o impacto da epidemia nas idades seguintes. Bem sei que a amostra não é aleatória. As crianças que acompanho, por uma razão ou outra, apresentam dificuldades para as quais os pais entenderam não poder, por si só, encontrar a melhor solução. Por outro lado, tenho adolescentes em casa, e o misto, se não permite a vista de satélite simula, pelo menos, a visão de um drone.
Um aspecto positivo desta época de confinamento foi o melhor conhecimento dos pais quanto às dificuldades, e presumo as competências, dos seus filhos. Falo em particular no que respeita aos problemas de aprendizagem. Tem sido interessante ser testemunha das mudanças de perspectiva. Muitos pais (e algumas mães, porque a maioria já as conhecia de ginjeira), obrigados a orientar o trabalho dos seus filhos, apercebem-se agora da natureza das suas dificuldades. O que antes era interpretado como preguiça ou falta de esforço, aparece, como os números da raspadinha, como dificuldades reais independentes da vontade. Estrutura em vez de adereço. Sabor amargo e doce, porque enquanto junta o casal na consciência do problema, multiplica a angústia por dois.
Quanto às crianças, depende. Os miúdos com traços do espectro do autismo estão nas suas setes quintas. A escola, vivida como arena onde o perigo espreita, é substituída pelo porto de abrigo que o quarto, as rotinas, sons e cheiros familiares tranquilizam. O ruído insuportável das outras crianças e a sua agitação permanente, numa vertigem que causa tonturas, aquietou na tranquilidade de uma ria de marés previsíveis. A ausência da comunidade é uma bênção, porque o inferno são os outros.
Os miúdos hiperactivos, com ou sem défice de atenção, dividem-se em dois grupos tal como os géneros. Uns, sem a estrutura da escola tradicional, desorganizam-se ainda mais perante o dilúvio de trabalhos que os professores encomendam. Muitos até os completam, mas esquecem-se de carregar na tecla que comanda: “send”, pelo que o esforço fica retido em casa, como traste que perde o valor a cada dia que passa.
Um dos meus irmãos não era particularmente dotado nas artes plásticas, pelo que a minha mãe lhe adicionava o talento próprio, como se somam dois números de sinal menos. Ficou célebre, no ambiente doméstico, a notícia que esse meu irmão um dia trouxe para casa:
– “Mãe… teve negativa a desenho!”
Foi para mim inesperado (embora não o devesse ser) a quantidade de mães que, por estes dias, confessam serem elas a fazer parte considerável dos TPC, quando não a sua totalidade. É que não dá estar atenta ao teletrabalho, à panela a ferver, à bulha entre dois irmãos e, simultaneamente, ao “despacha-te Santiago, se quiseres jogar no telemóvel”. É que se não for assim, lá vem o recado da directora de turma, nota com impacto emocional semelhante ao daquela carta que se abre pelo picotado com timbre do Ministério das Finanças.
Para outros, o ritmo mais solto de regras permite entremear actividades, atenuar a frustração e mostrarem-se mais competentes. É como digo: de que falamos quando dizemos “as crianças”? Cada um como cada qual.
Marcas na adolescência
Quanto aos adolescentes. Posso falar de experiência própria, com a autoridade de um n = 2, embora multiplicado por um factor considerável de amigos e conhecidos.
O que mais me impressionou foi a antecipação de um devir apocalíptico ainda que anunciado. As minhas filhas ouviam com uma preocupação distanciada o anúncio de um futuro em que a vida no planeta ia ser posta em causa pela exploração excessiva dos recursos naturais, alterações climáticas ou poluição. O nível das águas ia subir e cidades ficariam submersas.
Temperaturas extremas alargariam desertos e o homem viveria ameaçado e punido pela sua inconsciência ao perturbar o equilíbrio das coisas. Mas isso era o futuro, algo que as crianças sempre vêem como distante. Porém, eis que de repente ele bateu à porta, mandou todos para casa, fazendo temer a proximidade do amigo aquém de dois metros. Não deve ser fácil ver um túnel no fundo da luz.
Sempre me espantei, quando ia deixar as minhas filhas à escola, com a profusão de abraços quando encontravam uma amiga com quem tinham estado na véspera. A efusão do reencontro faria supor uma separação de anos e não de horas. Essa necessidade do contacto físico como assinatura da amizade, elemento concreto do afecto, deixou de existir durante estes meses. Cada amigo é um Avatar, um cibercorpo digital, e nos tempos mais próximos um simples abraço é como sexo sem protecção, traz consigo o risco de doença ou de morte.
Quando a pandemia acabar haverá uma explosão de abraços e de beijos, ou a distância prudente instalar-se-á nos países mediterrânicos, como se se tivéssemos seis meses em que o sol mal se levanta?
Anos depois de trabalhar em Nova Iorque, voltei ao meu hospital. Uma enfermeira de quem era próximo apresentou-me a uma colega. Hesitei no cumprimento, mas as raízes falaram mais forte, e decidi-me por um “beijinho” à portuguesa. A perplexidade dos presentes foi visível, e o desconforto que causei resolvido com sagacidade pela minha amiga, que desvalorizou a amostra inopinada de intimidade: “He is european, he kisses everybody!” (ele é europeu, beija toda a gente).
Até quando?