O que eu gosto no Superbowl
É fácil entender a fama e o sucesso que os intervalos do Superbowl têm para os americanos, e nesta insidiosa introdução esqueço deliberadamente que é o espaço publicitário mais caro do mundo, o equivalente a fazer um blockbuster em Hollywood para as duplas criativas envolvidas, e o momento da verdade para as grandes marcas americanas. É tudo uma questão de ser a única coisa verdadeiramente interessante que acontece naquelas cinco horas ou mais que o jogo dura. Bendito Manoel de Oliveira. A verdade é que alguns dos melhores anúncios do ano são revelados pela primeira vez nesse espaço e analisando-o podemos também fazer uma análise do momento dessa uma-vez-morta-mas-no-fundo-cada-vez-mais-presente-em-mais-sítios que é a arte de fazer anúncios publicitários em 30″ou pouco mais. Escolho aqueles, que, por diferentes razões, considero serem mais pertinentes no momento actual.
Este é talvez o melhor exemplo de como é possível voltar aos valores base, tão bem vistos em tempo de crise, sem fazer um anúncio que é um comunicado do departamento de marketing bem filmado, e de preferência protagonizado por alguém famoso e acima de suspeita (que é basicamente o caso de 80% da publicidade nacional, hoje). O novo anúncio da Volkswagen para apresentar o novo Passat é pura poesia publicitária. Passa tudo o que um bom departamento de marketing quer passar, mas em linguagem de pessoas, que eles, por tanto tempo passarem uns com os outros e nos corredores do politicamente correcto, por vezes desaprendem. Tem os valores certos, harmonia, família, estabilidade, universalidade, etc. Ilustra de forma clara o estrato socioeconómico a que se dirige. Mostra o carro com todos os planos certos. Tudo é perfeito, numa perfeição normal, quase ao alcance de todos. E depois dá o golpe de forma inesperada, subvertendo estes valores, esta linguagem certa e meticulosamente construída, relegando o carro para simples actor secundário da história de relacionamento daquela família, na qual todos nos projectamos, nem que seja por um momento, porque afinal é apenas a história de um relacionamento humano saudável, natural e cúmplice. E é isso que nos agarra. O que é humano, espontâneo e não fabricado, que aqui contraria toda a perfeição criada até ao momento e que se torna na força vital do filme. O que nos agarra não é o produto. Já ninguém quer saber de produtos. O produto é chato. Os humanos não.
Quando é que o perfeito se torna opressivo? Quando é que o design se torna fascista? O endeusamento da Apple e as consequências da sua omnipresença na sua imagem de marca começam a ter efeitos perigosos. Há cerca de um ano escrevi aqui um artigo que analisava a tentativa da Microsoft de mudar a percepção da Apple com a campanha I’m a PC. A estratégia de apelar ao que todas as campanhas políticas fazem quando têm a media, os opinion leaders e os trendsetters contra si -o homem comum, os sentimentos de igualdade, o orgulho profissional enquanto prova de existência válida, os chamados valores seguros. A campanha não mudou a nossa percepção da Microsoft. Pelo contrário, de certa forma serviu para aprofundar o gap de percepção entre as marcas. Mas, a verdade é que a Apple se encontra na perigosa fronteira de transição da marca de contrapoder para os marginais de luxo da sociedade, para a marca global omnipresente e impositiva com tantos tiques ditatoriais como qualquer outra, com a agravante de utilizar o design como ponta de lança de todo este sistema. E todos sabemos a relação perniciosa que historicamente o design desenvolve com o poder, quando ele se torna em mais um elemento de conformidade ideológica.
Desta vez foi a Motorola a utilizar a receita da Microsoft. Decidiu utilizar a referência de um antigo anúncio da Apple para provar que a marca se traiu a si própria e que hoje não é mais do que aquilo que criticava no famoso anúncio de 1984. Para provar isso a Motorola criou uma espécie de um re-edit desse anúncio, tentando provar que a Apple é hoje aquilo que criticava em 1984. Um anúncio com o mesmo cariz épico, onde retrata uma sociedade anestesiada pelos seus iPod, incapaz de comunicar, esteticamente uniforme e animicamente domada, para logo depois apresentar o herói da simplicidade, o último “gajo” normal na face do planeta, aquele que ainda reconhece os verdadeiros valores humanos e que tem um Motorola Xoom.
E é por isto que a Apple ganha sempre. Primeiro, porque a sua concorrência está mais preocupada com o que a Apple é, em vez de estar com aquilo que ela própria pode vir a ser. Segundo, porque não é genuína na argumentação, é gratuita e fácil, provando a sua estratégia da forma mais literal e descartável. Terceiro, porque está a vender uma coisa igual, ou parecida (lá está, um produto) com a arrogância de afirmar que esse simples facto, de criar um novo produto, iria mudar o mundo. A grande diferença? O anúncio 1984 da Apple, foi feito em 1984. Passaram quase 30 anos desde que a Apple nos fez a sua promessa, promessa que, com todos os exageros de hoje, tem vindo a cumprir de forma quase religiosa. E, durante todo este tempo o que andaram as outras a dizer?… ah, é verdade, andaram a vender produtos.