Pastelaria Bénard: Um espaço centenário que se mantém graças a uma mulher “completamente visionária, com uma enorme garra”

A Pastelaria Benard mantém-se como um ícone de Lisboa, atravessando gerações graças a dois pilares fundamentais: a paixão pela arte da pastelaria trazida de França e adaptada ao mercado português e a criação de um ambiente acolhedor. Mais do que um simples local para saborear doces, a Benard tornou-se um ponto de encontro onde os clientes se sentem em casa (tão em casa que há histórias caricatas que não se esquecem). A tradição familiar, garantida por Maria Augusta Montes, uma comerciante que não quis ver o espaço que frequentava regularmente morrer e a comprou nos anos 80, e a lealdade dos clientes, são essenciais para essa longevidade.

Foi na Rua do Loreto que nascia, em 1868, a Pastelaria Benard, fundada por Élie Benard. O termo “pastelaria” só viria a ser utilizado, em substituição de “pâtisserie” a partir de 1926, quando os dísticos das fachadas em idiomas estrangeiros foram sujeitos a um pagamento à Câmara. Na altura, seriam necessários de 500 reis para manter estes dísticos em francês. Em 1902, a famosa pastelaria, cujos doces e receitas provinham de França, mudava-se para a Rua Garrett, ainda nem A Brasileira do Chiado existia.

Para conhecer melhor os bastidores destes espaço centenário, a Marketeer conversou com João Pedro Montes, neto de Maria Augusta Montes, a mulher “completamente visionária, com uma enorme garra” que agarrou o negócio nos anos 80 para que a capital não perdesse um local cheio de história. Daí nascia a tradição familiar que trouxe a Pastelaria Benard até 2025.

A entrevista revela não apenas a história da pastelaria, mas o legado de uma mulher ousada e determinada, que marcou a vida comercial e cultural de Lisboa. Maria Augusta Montes não se limitou a gerir um negócio: foi uma líder carismática, organizando concertos privados, promovendo desfiles de moda vanguardistas e mantendo relações estreitas com a elite cultural e política da cidade.

Maria Augusta Montes: uma líder carismática “num mundo de homens”

“A minha avó, que era uma empreendedora nata, teve uma história de vida absolutamente espetacular, do ponto de vista, sobretudo, até da idade, na altura em que estas coisas aconteceram. Porque era uma mulher que estudava, era uma mulher que era empresária num mundo de homens e já era uma grande empresária na altura”, conta João Pedro Montes

Mas como surgiu a ideia de comprar a Benard? “Um dia, quando percebeu que a pastelaria estava com dificuldades, questionou: ‘mas onde é que eu vou tomar o pequeno almoço, onde é que eu vou almoçar? Como é que isso pode ser?’ Ela tinha um faro absolutamente espetacular e disse: ‘não, isto há-de ser um bom negócio e, além disso, eu preciso ter um sítio onde eu toda a minha vida vinha, onde todos os meus amigos vêm'”, relata o neto de Maria Augusta.

E assim foi. Maria Augusta Montes comprou o estabelecimento nos anos 80, num momento particularmente frágil da biografia da loja, remodelou-a e reabriu em 1983. “Não se conformava que se pudesse perder ali quase mais de 100 anos de história. E investiu, recuperou-a e pôs as coisas a funcionar. Era uma mulher, para termos uma ideia, completamente fora do seu tempo, era herdeira cultural de Mário Viegas, porque ela ajudava toda a gente ali à volta, o São Luís, o São Carlos, toda a gente, os atores, as atrizes, os músicos, vinham sempre. Ela ajudava quando tinham dificuldades, vinham dar almoçar e jantar lá. Chegava ao fim do dia, fechavam a porta, faziam mini concertos privados entre eles e conversas boémias até às tantas da manhã”, descreve João Pedro Montes.

Mais do que uma comerciante, Maria Augusta Montes foi uma figura culturalmente influente, tornando, a seu reboque, a pastelaria num verdadeiro ponto de efervescência cultural. Criou um ambiente boémio e sofisticado, onde a arte e os negócios se misturavam, tornando a Benard uma referência na cidade.

Como conta à Marketeer o seu neto, a personalidade forte e determinação foram cruciais para manter a pastelaria aberta em tempos de crise. Enfrentou períodos turbulentos, como a Revolução, sem nunca ceder à pressão de fechar as portas. A sua ligação à monarquia e a presença de membros da casa real na Benard reforçaram o prestígio e a tradição da pastelaria, que, até hoje, mantém um charme inigualável.

 

O mestre Lopes: “Entrou como aprendiz e hoje em dia é o mestre que já formou muitos pasteleiros”

Outro fator determinante para o sucesso da Benard, segundo João Pedro Montes, é a dedicação dos seus funcionários. Muitos deles trabalham na casa há décadas, passando conhecimento e cultivando uma cultura de excelência no atendimento. O mestre pasteleiro Lopes, por exemplo, começou como aprendiz e formou inúmeras gerações de profissionais, ilustrando o compromisso da Benard com a tradição e a qualidade.

“Nós temos o mestre Lopes que está lá há 50 e tal anos, entrou quase como aprendiz e hoje em dia é o mestre que já formou muitos pasteleiros e, que é o que ele diz, não está cansado. Mas amassar massa todos os dias às 4 e às 5 da manhã durante toda a vida não é para todos”, afirma João Pedro Montes. Apesar de deixar o mestre Lopes à vontade para que se reforme e possa assim descansar, este ali se mantém afirmando que “enquanto as mãos funcionarem, enquanto a patronagem da casa estiver, se ela pode eu também posso”.

A história da pastelaria nasce de uma inspiração na pastelaria francesa, mas está profundamente ligada à família que atualmente a dirige. A gestão é hoje partilhada entre vários membros da família, garantindo a continuidade dos valores e da identidade da Benard,

Ao longo das décadas, a Benard quis manter tradição aliando-a à inovação, preservando, ao mesmo tempo, a sua identidade. Segundo João Pedro Montes, a rivalidade saudável com outras casas históricas, como A Brasileira, ajudou a manter vivo o património lisboeta, reforçando a importância da Benard na cena gastronómica da cidade.

“O facto de terem percursos e até filosofias, às vezes, diferentes, uma mais, claramente, mais vanguardista, republicana, a Benard, mais conservadora, mais monárquica, ao longo dos seus 150 e muitos anos, quase 160 anos de história… há uma clara rivalidade, mas muito positiva, muito boa”, afirma o neto de Maria Augusta Montes.

A essência que se mantém e o pedido insólito de bolos-rei para Paris

Atualmente, a pastelaria enfrenta desafios como o turismo massificado, mas mantém-se fiel aos seus princípios, servindo os lisboetas e visitantes sem perder autenticidade.

“É um ponto turístico, não podemos evitar isso. Isso tem as coisas boas e as coisas más. Também há um excesso de turismo não contributivo, mas não deixamos de ser portugueses e servir os lisboetas e as famílias que sempre cá vieram, sem fugir, ou sem querermos agora começarmos a mudar tudo”, sublinha João Pedro Montes. “Quem vem visitar Lisboa não quer comer a mesma coisa que comeu a semana passada em Nova Iorque, ou há duas semanas em Berlim, ou em Londres. A nossa ideia é continuar a dar às pessoas genuidade, ou seja, o que lá vão comer hoje, por exemplo, é genuíno, e se calhar se tivessem vindo há 20 ou 50 anos atrás, tinham comido a mesma receita, ou há 100 anos”, reforça indicando que o estabelecimento segue as mesmas receitas há décadas. 

E, claro, há histórias que marcam o ADN da pastelaria. “As histórias boas são absolutamente espetaculares. Nós temos pessoas de todo o mundo que nos vêm relembrar de uma série de memórias como os pedidos de casamento que fizeram aqui e que ainda hoje estão juntos. No outro dia, por exemplo, um senhor ligou para encomendar bolos-rei. Questionámos: ‘Onde está?’ e respondeu que tinha um desafio porque estava em Paris”, começa por recordar João Pedro Montes.

O cliente acabou por encomendar três bolos-rei para Paris porque eram “ótimos” e este ano não viria a Portugal, mesmo sabendo que não iam chegar tão frescos, mas não se ficou por aqui. “Eu vou-lhe pedir uma coisa, mas não leva a mal. Será que vocês me podiam mandar uma chávena e um pires da Benard?”, relata o neto de Maria Augusta Montes recordando o insólito pedido. 

“Eu vou fechar os olhos, vou fingir que estou aí a beber um café”, terá ainda dito o cliente. Um tempo depois, esse mesmo cliente, voltou com um grupo enorme, e comprou, vários bolos-rei, ficando na memória da pastelaria e de como esta mantém uma ligação emocional com os seus clientes.

A Benard é um dos 164 espaços integrados na iniciativa “Lojas com História”, um programa da Câmara Municipal de Lisboa (CML) que visa reconhecer, preservar e dinamizar o comércio tradicional e histórico da cidade. Lançado em 2015, o programa distingue estabelecimentos comerciais que se destacam pelo seu valor histórico, cultural ou social, atribuindo-lhes a distinção de “Loja com História”.

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