No tabuleiro do Natal capitalista: entre o espírito de dar e os interesses económicos

Texto de Teresa Garcia-Marques, Professora do ISPA – Instituto Universitário

A associação Natal-prendas poderia reportar-se aos reis magos, mas os historiadores encontram nesta, como noutras festas cristãs, a influencia de tradições pagãs, referindo-o como uma tradição da festa do solstício de inverno na Roma Antiga.

Este ato de dar no Natal é influenciado pela expansão capitalista do século XX, associado à constante busca de novos compradores. Esses esforços de marketing rapidamente se dirigem às crianças, na esperança de elas incentivarem os pais a comprar mais produtos, criando o Natal capitalista que hoje conhecemos, um período festivo com comercialização intensa, com avalanches de atividades dirigidas ao consumo. Todos, em sociedade, independentemente da religião jogamos no tabuleiro do Natal capitalista.

O interesse económico no Natal é claro e nem vale a pena escrever sobre o assunto. O que deve ser o foco da nossa atenção é como é que esse interesse se articula com o interesse social e afeta o espírito positivo do Natal. Os estudos que documentam a forma como vivemos esta época sugerem que a maioria das pessoas associa afeto positivo ao Natal, reportando estar mais “alegres” do que de costume, apesar de não necessariamente mais satisfeitas e nem menos perturbadas, como demonstrou o estudo de Kasser e Sheldon, em 2002.

Existem diferenças nas experiências do Natal para os que se focam, ou não, nas questões espirituais e familiares. Os estudos, realizados por Kasser e Ryan, em 1993 e por Myers, em 2000, sugerem que quem relata uma experiência espiritual e familiar no Natal relata maior bem-estar pessoal (do que quem o vê como uma experiência comercial.  No geral os aspetos materialistas da temporada parecem prejudicar a felicidade, levando o período de Natal a estar relacionado a uma diminuição na satisfação com a vida e no bem-estar emocional. Tal foi demonstrado em 1993 por Miyazaki e replicado em 2016 por Mutz.

Todos percebemos como o consumismo do Natal retira significado ao ato de dar, tornando-o numa obrigação e por vezes mesmo numa tarefa dolorosa. No Natal capitalista vemos como a abundância material dá azo a interpretações sociais do ato de ter. Este passa a ser um veículo de identificação social, permitindo enviar sinais para o mundo exterior sobre quem queremos ser e com que grupos nos identificamos. Através da troca dos bens materiais comunicamos status, sucesso ou posição social.  O capitalismo transformou o ato de dar numa troca comercial onde o “quanto gostas de mim” é traduzido pelo “quanto me dás”; onde “o como me conheces”, é traduzido pelo “o que me dás” e onde “aquilo que eu sou” é referido como “os presentes de que gosto”.

No Natal somos todos, num mesmo momento, sujeitos ao escrutínio social, num contexto que favorece a rápida comparação social: “Eu recebi algo de valor, e tu não”, “Aquela pessoa valorizou-me, e a outra não”. Embora os presentes não falem por si mesmos, cada presente que recebemos envolve a descodificação de uma mensagem transmitida pelo doador, o que carrega um fardo interpessoal adicional de reciprocidade adequada. Essas descodificações têm consequências diversas para a nossa autoestima e relações interpessoais. Todas as trocas sociais, expectativas, encantos e desencontros são colocados na mesa de Natal (ou debaixo da árvore). Tudo acontece de forma muito rápida e no meio de diversos eventos, o que pode fazer com que, para alguns, os desentendimentos passem despercebidos, enquanto para outros, o impacto psicológico das relações se cristalize negativamente, sem tempo para resolver possíveis falhas de comunicação.

O Natal capitalista transformou o ato de dar em avaliação e competição, dando razão a podermos ficar tristes num momento onde nos dão presentes. Que outra razão haveria para muitos definirem o dia de Natal como um dos piores dias do ano, e os estudos o demonstrarem como fonte de insatisfação?

O Natal cristão, valoriza o ato de dar em si e menos a natureza do presente (reduzindo os impactos negativos do “mis-giving“; Doidge, 2016); favorece a interpretação positiva do ato de dar como de um ato de amor de alguém por nós; percebe que o presente mais barato pode ser o mais valioso etc. Mas, se o Natal cristão existe em alguns de nós o Natal capitalista existe para todos! E é preciso dizer-lhe que não!

 

 

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