Moullinex: «Muitas das Artes funcionais vão ser substituídas por coisas generativas»
Poderão as máquinas substituir os artistas nas suas criações ou está a arte salvaguardada nesta dualidade máquina/ser humano? Foi este o mote da conversa que juntou, na 20ª Conferência da Marketeer, o actor Ivo Canelas e o produtor e DJ Luis Clara Gomes, mais conhecido pelo seu alter-ego de Moullinex. Com moderação de Mª João Vieira Pinto, directora de Redacção da Marketeer, a conversa partiu do tema “Entre a ARTificialidade e a ARTE” e se, numa primeira abordagem Ivo Canelas tenderia a afirmar que, entre os humanos, os actores e os artistas não seriam substituídos e seriam sempre público uns dos outros, pensando mais aprofundadamente a sua visão mudou: «Com esta nossa característica humana de suspendermos a descrença e de nos envolvermos com coisas não necessariamente humanas – e acreditarmos que o são -, penso algo diferente. Não tenho particular prazer ou à vontade em estar à frente de uma plateia sem ser como actor. Se tivesse a possibilidade de enviar algo que me representasse e que, literalmente, enganasse as pessoas, eu se calhar faria de bom grado, confiando que essa representação de mim me representasse com realidade.»
O medo de sermos substituídos tem muito a ver com a forma como nós, seres humanos, nos relacionamos uns com os outros, garante Ivo Canelas. «Estamos sempre a tentar substituir os outros, a tentar ficar numa posição por cima. Esse medo está em nós, quase como se fosse cármico de isto vai voltar para nós.»
Qualquer pessoa criativa em 2023 está trabalhar com computadores e directa ou indirectamente com inteligência artificial, diz Moullinex, juntando-se à conversa. O profissional acredita que muitas das artes mais funcionais provavelmente vão ser substituídas por coisas generativas. «A arte vai sempre ocupar o espaço de nos ajudar a pensar nas grandes questões da humanidade. E a arte – gerada por IA ou não – e a forma como ela nos afecta (ou não) é a questão que me interessa explorar.» O produtor defende que é um pouco antropocêntrico da nossa parte, acharmos que por mandarmos uma IA generalista criar arte essa arte tem de ser para ser consumida por seres humanos e não por outras IA. «Nós, humanos, temos limites físicos para a forma como percepcionamos a realidade. Esses limites físicos são as cores com que pintamos, as frequências com que fazemos música, essas frequências são harmónicas porque são harmónicas fisicamente para os nossos ouvidos… A música de outras espécies (IA ou não) não tem de ser harmónica para nós.» Ao produtor interessa-lhe a IA enquanto for uma ferramenta para ajudar, para complementar e para dar uma inteligência aumentada porque será mais uma forma em que pode fazer peças. «Vai ser barro, mais paletas de cores, mais fermento. E isso é o que me interessa explorar», confirma.
E se Moullinex assume que está a usar as ferramentas que tem ao seu dispor para as suas criações, Ivo Canelas também não esconde que usa uma série de ferramentas no seu dia-a-dia, a começar pelo GPS no carro e o relógio no pulso que o lembra que está em falta com o exercício físico matinal. «Estamos cercados por ela e cada vez mais dependentes. E há uma tendência de nos encostarmos a coisas que fazem tarefas por nós.» Daí que considere ser sempre maravilhoso quando há falhas de electricidade e desaparece tudo o que é electrónico. «Há qualquer coisa em nós que faz um reset.»
A electricidade auxilia-nos e impacta-nos para o bem e para o mal, lembra Moullinex. «A qualidade e esperança média de vida aumentou colectivamente como espécie associada a muitas destas descobertas, mas ao mesmo tempo a não reflexão da sociedade sobre as implicações de muitos destes avanços – e quando falo de não reflexão é atingirmos um número crítico de pessoas que consiga efectivamente pensar sobre as implicações de muitos destes “avanços” – faz com que esses aconteçam sem os podermos propriamente controlar, sem podermos regular, sem os podermos discutir, sem os podermos tornar inclusivos e igualitários.» Porque não esqueçamos que os avanços não chegam a toda a gente na mesma velocidade, muitos não chegam a algumas partes do globo e a algumas demografias.
Uma reflexão que Moullinex considera ser de extrema necessidade e questiona a audiência se já se deu conta de que as assistentes de voz são, em regra, com vozes femininas. «Nós insultamos a Siri, insultamos a Alexa! Estamos a perpetuar uma violência humana sobre mulheres. Isto é uma consequência de não pensarmos sobre a implicação da tecnologia na nossa vida.» O produtor defende que se pense mais nestes temas, questionando o bem que estas tecnologias nos fazem, mas também o mal. Sem deixar o tema, Ivo Canelas confessa que conversa com a sua assistente de voz e que gosta de a testar em temas mais sensíveis, como os políticos ou de inclusão, para ver o quão neutra ela é. E a verdade, diz, é que a reacção é muito parecida com a de muitos humanos que fogem dessa conversa.
Ainda com foco na voz, Ivo Canelas – que faz muitos trabalhos de locução – salienta que o universo da locução está a desenvolver-se a um ritmo incrível com a IA com vozes já pouco artificiais, que já simulam o erro e têm emotividade. «Tinha uma namorada há muitos anos que tinha uma relação profundíssima com um Tamagotchi. Havia uma série de reações que são baseadas no pressuposto artificial, mas a partir do momento em que criamos uma relação real, é pouco importante se o ponto de partida é artificial ou não, porque é o meu investimento nele.»
Pegando no exemplo da antiga namorada do seu interlocutor, Moullinex lembra que há um fenómeno em adolescentes japoneses que se esquecem fisicamente de tratar do corpo, de se alimentar e de necessidades fisiológicas, simplesmente porque a fronteira entre realidade digital e a realidade virtual desapareceu e muita da sua existência está a acontecer online. «Esse caminho para o Transumanismo é uma coisa que me interessa profundamente, até por questões de sustentabilidade no planeta», confessa o produtor. Ainda que reconhecendo que pode ser perigoso, lembra que «pode ser a nossa única salvação enquanto espécie neste planeta se esgotarmos os recursos. Se calhar a nossa única solução colectiva é mesmo digitalizarmo-nos, se for possível. E aí entram as questões da alma e questões metafísicas». E vai confessando que lhe interessa explorar o conceito de vida para lá de algo que é só biológico. «Quão válida é uma espécie nova que criamos e que é senciente?», questiona. Ivo junta mais umas achas à fogueira lembrando que o fascina a forma como os humanos se colocam sempre no topo da cadeia alimentar, achando-se sempre superiores. «É particularmente interessante e revelador de nós próprios estarmos agora com medo de ser substituídos por algo que criámos e que nos pode tornar obsoletos, em última análise, por apenas copiar o nosso comportamento.»
E dá o exemplo das real life dolls que em mercados como o chinês são uma indústria. «Eu sou actor e se a minha função for animar ou envolver-me com um objectivo inanimado, eu vou fazê-lo através da minha imaginação e é esse o meu treino. Se um ser humano não actor – que tem tanta ou mais imaginação do que eu porque não está provavelmente limitado pelas minhas técnicas – consegue fazer a mesma coisa a um objecto inanimado, quando estas coisas se cruzarem, a passagem emocional acontece.»
Implicações legais
«Quando milhões de fotografias são scanadas e se juntam para ser analisadas, sendo construído um modelo de rede neuronal, estamos basicamente a anular tudo o que é copyright. Ninguém perguntou aos autores destas fotografias, imagens ou ilustrações se consentiam a utilização da sua arte», lembra Moullinex que acredita que o caminho da regulamentação vai ser difícil de caminhar. Ainda assim, acredita que em continentes como a Europa se calhar vai haver uma melhor regulamentação. «Mas nada impede um Estado menos democrático de utilizar isto.» O profissional acredita que a regulamentação vai implicar muita coisa no copyright. «Estamos, basicamente, a transportar todos os nossos problemas, discriminações e vieses enquanto seres humanos para treinar uma rede. O problema é que é preciso intervenção humana para castigar ou não castigar uma rede de cada vez que ela diz alguma coisa racista. Mas a verdade é que ela só está a dizer coisas que viu que nos viu a dizer.» O DJ deixa o repto de como é que vamos conseguir interpretar estes dados quando não conseguimos encontrar consenso sobre o que é que é humano e o que não é humano, ou sobre o que é que é bom e mau. «Encontrar consenso sobre castigar ou não estas redes vai ser uma questão muito importante para os marketeers dos próximos anos.»
Texto de Maria João Lima