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Maria Garcia, da Leya, sobre Livraria BuchHolz: “um espaço onde se cruzavam figuras que podiam estar tanto a fugir como a espiar”
A Livraria Buchholz é muito mais do que um espaço de venda de livros. Com uma história que remonta a 1943, este emblemático local tem desempenhado um papel fundamental na vida cultural e intelectual de Lisboa. Desde a fundação por Karl Buchholz, um livreiro alemão que se mudou para a capital portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial, a livraria tornou-se um ponto de encontro para escritores, artistas, políticos e estudantes.
Ao longo das décadas, a Buchholz consolidou-se como um epicentro de efervescência cultural, promovendo debates, exposições e encontros que marcaram o pensamento e a expressão artística em Portugal. Nomes incontornáveis da literatura e da política portuguesa, como Mário Soares, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, José Cardoso Pires e David Mourão-Ferreira, eram presenças assíduas no espaço. A livraria não se limitou à literatura, tendo promovido também exposições de artistas como Helena Almeida, Mário Cesariny e José Escada.
Recentemente distinguida pela Câmara Municipal de Lisboa com o estatuto de “Loja com História”, a Buchholz continua a reinventar-se sem perder a identidade. A integração no grupo LeYa, em 2009, e a renovação do espaço em 2023 são exemplos dessa capacidade de adaptação, apostando numa oferta diversificada que inclui literatura internacional, discos de vinil e arte portuguesa. Para além disso, a livraria tem reforçado a programação cultural, organizando exposições, concertos, clubes de leitura e eventos interativos que mantêm viva a sua relevância na cena cultural contemporânea.
Em entrevista à Marketeer, Maria Garcia, diretora de Novos Negócios do Grupo Leya, explora a riqueza da história da Livraria Buchholz, o seu impacto na cidade de Lisboa e na cultura portuguesa, bem como os desafios e oportunidades que se colocam na missão de preservar e inovar.
Qual a importância histórica da Livraria Buchholz para a cidade de Lisboa e para a cultura portuguesa?
A Livraria Buchholz é uma das mais emblemáticas livrarias de Lisboa, tendo desempenhado, ao longo dos seus mais de 80 anos, um papel central na vida cultural e intelectual da cidade. Fundada em 1943, tornou-se rapidamente um ponto de encontro para escritores, artistas, políticos e estudantes, servindo como um espaço de troca de ideias e promoção da literatura e das artes. A sua inclusão no programa Lojas com História, da Câmara Municipal de Lisboa, reforça a sua relevância na identidade cultural e patrimonial da cidade.
Como é que a Livraria Buchholz se tornou um ponto de encontro para intelectuais, artistas e políticos ao longo das décadas?
Desde a fundação, a Buchholz atraiu uma elite intelectual e cultural, funcionando como um espaço de discussão e partilha de ideias. Figuras como Mário Soares, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira e muitos outros frequentavam regularmente a livraria. Nos anos 60 e 70, organizava exposições e eventos culturais, o que reforçou a sua vocação como centro cultural.
De que forma a livraria se transformou num ponto de referência para a literatura e a arte desde a sua fundação em 1943?
A Buchholz destacou-se desde o início por oferecer um acervo diversificado, incluindo livros em línguas estrangeiras e uma seleção de obras de arte. Nos anos 60 e 70, promoveu exposições de artistas como Helena Almeida, Mário Cesariny e José Escada, consolidando a sua posição como um espaço não apenas de literatura, mas também de expressão artística. Esta abordagem diferenciadora ajudou a consolidar a livraria como um local de cultura global em Lisboa.
Como a Segunda Guerra Mundial influenciou a criação da Livraria Buchholz em Lisboa e a sua oferta inicial de livros estrangeiros e arte?
Nascido em Göttingen a 26 de agosto de 1901 e educado em Frankfurt por uma tia, Karl Buchholz chega a Berlim no arranque dos loucos anos 20, em busca de trabalho como livreiro. Ousado e impetuoso, passados apenas quatro anos, abre a sua primeira livraria que terá sido bombardeada durante a segunda guerra mundial. Depois disso, Karl Buchholz vem para Lisboa onde, em julho de 1943, abre o nº 50 da Avenida da Liberdade, uma livraria em nome próprio, à imagem e filosofia da Buchholz de Berlim.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Lisboa era um ponto de passagem para refugiados e espiões devido à sua neutralidade. A Buchholz, que vendia livros proibidos pelo Terceiro Reich e pelo Estado Novo, acabou por se tornar um local frequentado por personagens desse cenário internacional. Era, portanto, um espaço onde se cruzavam figuras que podiam estar tanto a fugir como a espiar.
Além dos livros em diversas línguas, Karl Buchholz negociava na clandestinidade “arte degenerada”, assim apelidada pelos nazis, uma atividade que só nos últimos anos se conheceu como resultado de diversas investigações históricas que, entretanto, foram realizadas
Como é que a localização da livraria na Avenida da Liberdade influenciou a sua evolução e relevância ao longo do tempo?
A Avenida da Liberdade sempre foi uma das artérias mais importantes de Lisboa, associada a uma certa sofisticação e dinamismo cultural. A presença da Buchholz nesta localização estratégica permitiu-lhe atrair um público diversificado, desde intelectuais a políticos e estudantes. Quando se estabeleceu nas atuais instalações, a livraria consolidou-se ainda mais como um espaço de referência, beneficiando do fluxo cultural e comercial da zona.
Quais são alguns dos momentos históricos mais marcantes associados à livraria, como o encontro entre Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas?
A Buchholz foi palco de vários momentos históricos relevantes para a cultura portuguesa. Entre eles, destaca-se, nos anos 80, o encontro entre Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas na sala superior da livraria, onde surgiu a ideia que resultou na criação do O Independente, um jornal que marcou o panorama político e mediático português.
Na década de 60, em que a Buchholz não era apenas uma livraria mas também uma galeria de arte e uma discoteca de música clássica, o maestro Vitorino d’Almeida chegou a referir que, durante anos, foi “a melhor discoteca de Lisboa”. Ao mesmo tempo, em tom caricato, Álvaro Lapa costumava dizer que “nasceu ali”, evidenciando a importância do espaço para os artistas da época.
De que forma a Livraria Buchholz tem preservado a sua identidade ao longo dos 80 anos de existência, mantendo-se relevante para diferentes gerações?
A capacidade da Buchholz de se reinventar tem sido crucial para a sua longevidade. A integração no grupo LeYa, em 2009, permitiu-lhe modernizar-se sem perder a sua essência. Em 2023, celebrou os seus 80 anos com uma renovação que incluiu o reforço da sua oferta de livros em inglês e outras línguas estrangeiras, vinis e arte portuguesa. Além disso, tem investido numa programação cultural variada, com exposições, concertos, clubes de leitura e podcasts ao vivo, garantindo que continua a ser um espaço dinâmico e atrativo para novas gerações.
Como é que a integração da Livraria Buchholz no programa “Lojas com História” reforça o papel na identidade cultural e histórica de Lisboa?
A distinção atribuída pela Câmara Municipal de Lisboa através do programa Lojas com História reconhece a importância da livraria na preservação da memória e identidade cultural da cidade. Este estatuto garante não só o reconhecimento oficial da sua relevância histórica, mas também medidas de apoio que contribuem para a sua continuidade como espaço cultural de referência.
De que maneira a programação cultural atual da livraria, como exposições e eventos, reflete a sua importância na cena cultural contemporânea?
Nos últimos anos, a Buchholz tem reforçado a sua programação cultural, voltando a ser um espaço de experimentação e inovação. Desde exposições e apresentações de livros até concertos e podcasts ao vivo, a livraria tem acompanhado as novas tendências da cultura e do entretenimento. Para o mês de março, por exemplo, está programada uma mostra dedicada a Herberto Helder, por ocasião dos 10 anos do seu desaparecimento, um dos mais enigmáticos poetas portugueses dos séculos XX e XXI.
Mantemos o nosso habitual Clube de Leitura mensal que no dia 12 de março será dedicado ao tema Mulheres Poetas, que será orientado por Raquel Marinho e no qual vão ser discutidas as obras de Maria Teresa Horta “As Palavras do corpo” e Adília Lopes “Dobra”, entre outras. Mantemos também o nosso clube de leitura juvenil, dedicado à faixa etária dos 13 aos 16 anos, lançamentos de livros, conversas com autores e concertos de música ao vivo todos os meses.
Qual é o significado da renovação da livraria em 2023, com a aposta na literatura internacional, discos de vinil e arte portuguesa?
A renovação simboliza um novo ciclo para a Buchholz, mantendo a sua identidade, mas adaptando-se aos interesses contemporâneos. O espaço renasce não apenas como uma livraria, mas como um local de experiência cultural com curadoria.
Destina-se a todos os amantes da literatura, desde os leitores ávidos dos grandes nomes clássicos e contemporâneos até aos entusiastas de novas tendências nas artes plásticas, música e design. A aposta na literatura internacional responde à crescente procura por livros em inglês e francês, enquanto a introdução de vinis, através da parceria com a Flur Discos, e a curadoria de arte portuguesa pela Icon Shop reforçam a livraria como um espaço cultural multifacetado.
Além disso, a Buchholz pretende ser um ponto de referência para os estrangeiros que vivem ou visitam Lisboa, oferecendo uma bibliografia que os acompanhe na exploração da cidade e do país.
Quais os desafios e oportunidades enfrentados pela Livraria Buchholz ao modernizar-se, mantendo a sua herança cultural e histórica?
Queremos manter este grande desafio de equilibrar a modernização com a preservação da identidade histórica da livraria. A renovação de 2023 e a inclusão no programa Lojas com História são exemplos de como a Buchholz tem sabido enfrentar estes desafios, transformando-os em oportunidades para atrair novas audiências.