Marcas caladas em tempo de crise? «Sem comunicação não há relação, sem relação não há confiança»

Quase um ano volvido desde a chegada do novo coronavírus a Portugal, estamos melhores a falar sobre o assunto? Duarte Zoio, director de Comunicação da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), acredita que sim. A disseminação de informação sobre a pandemia e o impacto do vírus permitiu clarificar a comunicação e garantir que os vários interlocutores estão em níveis semelhantes de entendimento.

«Já falamos melhor e com mais certeza sobre o que esta pandemia representa, quais as consequências e o que nos tem vindo a ensinar. Contudo, também penso que nesta altura deveríamos estar numa fase mais adiantada…», aponta o responsável. Em entrevista à Marketeer, Duarte Zoio faz uma análise ao desempenho do Governo e das autoridades públicas na comunicação durante este período, mas também aponta caminhos para as marcas e empresas que querem manter a relação com os consumidores sem polémicas e com os efeitos desejados – lembrando que não há espaço para silêncios.

Segundo Duarte Zoio, «as marcas e organizações, mais do que nunca, têm de representar valores em que as pessoas se revejam e que façam com que se sintam realizadas quando interagem de alguma forma».

Como avalia a comunicação do Governo e demais autoridades públicas neste período?

É sempre mais fácil criticar do que elogiar. Não quero ser presunçoso ao ponto de adiantar que tudo está mal e que faria melhor, nem que seja porque, enfim, creio que têm existido alguns “constrangimentos” neste processo.

No entanto, acredito que existem situações que poderiam ter sido precavidas nas definições das várias fases da estratégia de comunicação e que, na minha opinião, aumentariam consideravelmente a eficácia e, consequentemente, a compreensão e adesão de determinados comportamentos por parte da população. E é importante salientar este ponto do comportamento. Ou seja, apesar de existirem manuais e protocolos de comunicação de crise para tudo e mais alguma coisa, esta pandemia, além de nos ter apanhado a todos totalmente desprevenidos, tem uma característica diferente de uma outra crise com um CEO, organização ou mesmo de um Governo: o sucesso da comunicação e da gestão desta crise está totalmente dependente da adopção de comportamentos por parte das pessoas.

Como assim?

Qualquer pessoa da área da comunicação conhece os princípios elementares da comunicação de crise e os seus objectivos, mas será que seguindo somente essas regras e princípios é possível mudar comportamentos? E nem estou a falar numa campanha cuja finalidade passa por tentar criar uma tendência ou mudar o comportamento do consumidor, algo que qualquer marketeer poderá testemunhar ser extraordinariamente exigente. Agora imagine numa crise desta natureza e com os contornos que todos nós conhecemos. Repare: quando tenho de gerir uma crise, entre outros objectivos, tenho de trabalhar questões relacionadas com a confiança. Mas, neste caso em particular, essa relação tem como meta não apenas que as pessoas não percam a ligação e confiança que têm em mim, mas também que adoptem os comportamentos que eu peço para elas tomarem. E isso (mudança comportamental) é extremamente complexo, exigindo que existam especialistas das ciências comportamentais, como psicólogos, nas equipas de comunicação, não só para dar os seus insights e inputs na definição de estratégias, como também na execução dos próprios planos.

Há, portanto, um papel das ciências comportamentais a desempenhar na comunicação? De que forma?

Absolutamente. Para mim é elementar e é algo que, penso, tem falhado desde o início por um conjunto de situações que me ultrapassa, mas o curioso é que nada disto do que estou a dizer é novo. Veja bem, há cerca de 100 anos, Edward Bernays, “pai” das Relações Públicas, já estudava e aconselhava-se com psicólogos quando estava a definir algumas das suas acções. Mesmo agora, Rory Sutherland, vice-presidente da Ogilvy UK, fundou um gabinete de “Behavioural Science Practice” na sua organização, que usa as ciências comportamentais na comunicação.

Nos últimos tempos, vemos algumas campanhas que vão exactamente contra o que a literatura nos diz nestas questões comportamentais, como, por exemplo, anúncios com um elevado impacto negativo ou a culpabiliza; ou comunicações a informar que a “larga maioria das pessoas” não está a cumprir com as indicações, o que não é de todo verdade. Ora, se sabemos que o medo é um importante elemento na comunicação, também sabemos que tem um prazo. Depois, tudo o que referi como exemplo tem um efeito perverso, uma vez que as pessoas, além de normalizarem aqueles números que são repetidos diariamente, na generalidade, não sentem qualquer tipo de empatia quando sentem que estão a ser injustamente acusadas (daí ser importante não responsabilizá-las, mas consciencializá-las), tendem a “proteger-se” (mudar de canal, por exemplo) quando são confrontadas constantemente com algo potencialmente negativo para elas ou para a sua família, e tendem a seguir a norma social. E se a “larga maioria das pessoas” não cumpre…

E do lado das empresas/marcas? Como vê o desempenho neste período, na generalidade?

Se me permite partilhar uma brevíssima história… Quando começou esta pandemia, tive alguns amigos que me pediram ajuda para desenhar uma estratégia de comunicação de crise. E coloquei a mesma questão a todos: “Qual era a vossa estratégia de comunicação de crise… antes da crise?”.

Com isto pretendo dizer que, no fundo, em tempo de paz prepara-se a guerra, ou seja, a comunicação de crise de uma organização começa muito antes de uma potencial crise (e ninguém está imune). Portanto, tivemos empresas preparadas e que foram trabalhando a sua comunicação também para eventualidades e que, quando rebentou a pandemia, conseguiram reagir e readaptar-se muitíssimo bem. E neste ponto gostaria de destacar aquelas organizações que não ficaram dependentes do evoluir da pandemia e decisões do Governo, tendo elas próprias começado a recolher e trabalhar informações e dados para readaptar decisões, estratégias de comunicação segmentadas e lançar mesmo novos produtos ou serviços verdadeiramente personalizados, assim como antecipar ou mesmo criar tendências de comportamento das pessoas e potenciais clientes. E o curioso é que não foram somente as “Amazons da vida” que fizeram isto, mas também pequenas organizações.

Por outro lado, tivemos outras empresas e marcas que, enfim, começaram apenas nesta altura a comunicar sem grande estratégia e com resultados que não considero especialmente positivos; neste momento, a sua estratégia está totalmente dependente das decisões das entidades responsáveis. Agora, claro que também há empresas que não têm mesmo grande margem de manobra…

Há bons ou maus exemplos em particular que queira referir?

Além das campanhas baseadas no medo e culpabilização que referi anteriormente, tenho de dizer que nunca fui grande entusiasta do “movimento” #VaiFicarTudoBem. Não, não vai e uma marca, por muito boa vontade que tenha de dar esperança às pessoas, não poderá prometer algo que não sabe ou consegue realizar. Temos milhares de famílias destruídas, negócios falidos, desemprego a aumentar e uma crise social e financeira à porta. Não me parece honesto dizer a muitas destas pessoas que #VaiFicarTudoBem. Paralelamente, também não me sinto especialmente confortável que as marcas ou decisores falem constantemente no “novo normal”. Não podemos adormecer e sermos conquistados pelo “novo normal”; temos de continuar a lutar pelo “normal”, não antigo nem novo, mas apenas “normal” que evoluiu.

Por outro lado, o que não faltam são exemplos de campanhas e acções que, na minha opinião, estão muito bem conseguidas. Por exemplo, gostei particularmente de uma acção da DGS (“Há lutas em que não há concorrência”) que passou por ter os pivots da RTP, SIC, TVI e CMTV a anunciar ao mesmo tempo nos respectivos jornais da noite as novas medidas da DGS. Depois, temos campanhas que achei muito válidas como “You can´t stop us” da Nike, “#CANTSKIPHOPE” do Turismo de Portugal (que dadas as circunstâncias e dificuldades imensas no seu sector tem tido um posicionamento e actuação muito interessante), ou mesmo da Budweiser que este ano comunicou que não iria lançar um anúncio no Super Bowl (primeira vez desde 1983) e que iria entregar o dinheiro da produção e compra do espaço a acções de sensibilização da vacinação (sendo esta própria decisão uma acção inteligente de comunicação…).

Que cuidados são necessários quando se pensa uma estratégia de comunicação em tempo de pandemia?

Além do obrigatório bom-senso, característica que considero determinante na área da comunicação, creio que será imperativo assumir a imprevisibilidade do momento e delinear ou reinventar uma estratégia que contemple diversos cenários, tendo por base a recolha e tratamento dos dados e informações que salientei anteriormente. E creio que este ponto poderá separar o sucesso ou o fracasso das organizações nesta altura e num futuro próximo. Por exemplo, no momento em que estamos a ter esta conversa ainda não sabemos quando é que o confinamento vai terminar… Depois, e isto já é um lugar-comum, qualquer organização ou marca sabe que nos dias de hoje, e mesmo no período pré-pandemia, não basta ter um produto ou serviço bom e acessível ou uma imagem “simpática” – tem de haver uma verdadeira relação entre a organização e os seus stakeholders.

As marcas e organizações, mais do que nunca, têm de representar valores em que as pessoas se revejam e que façam com que se sintam realizadas quando interagem de alguma forma com aquela organização ou marca. Daí termos empresas que têm vindo a trabalhar, e bem, na humanização, partilha de valores, promoção da responsabilidade social e sustentabilidade. E na comunicação interna que assume actualmente um papel fundamental. Em jeito de resumo, e como diria o Simon Sineck, defendo que as organizações, mais do que nunca, têm de saber e comunicar o seu “Why”.

Quais são os principais erros?

Acho que é impreterível que as organizações ou marcas não fujam da linha estratégica que acabei de referir, devendo até acentuar, e não cair na tentação e obsessão de querer promover a sua imagem ou vender tudo a todo e qualquer custo. A venda não deverá ser encarada como um fim, mas como uma consequência da relação existente entre o cliente e a marca.

Diria também que tem de haver coerência e continuidade. Não basta lançar um anúncio ou fazer um acção pontual, por mais extraordinária que seja, e depois ficar quieto e em silêncio à espera de resultados.

E há casos em que o silêncio é melhor?

Sem comunicação não há relação, sem relação não há confiança e sem confiança não há razão para continuar…

A crise sanitária tem levado também a uma maior abertura sobre o tema da saúde mental. Como vê esta evolução?

De facto, nunca se falou tanto em saúde psicológica como actualmente. No entanto, é importante esclarecer que nada disto é por mero acaso. Ou seja, se hoje em dia falamos abertamente sobre as questões de saúde psicológica, foi porque ao longo dos últimos anos tivemos uma Ordem profissional e milhares de psicólogos e estudantes a promover a Psicologia e a sublinhar que não pode haver saúde sem saúde psicológica. É muito positivo que os decisores em particular e a sociedade em geral estejam cada vez mais preocupados e atentos às questões psicológicas, assim como à importância da prevenção nesta área, e sentir que já não é uma tendência mas uma realidade o investimento das organizações na saúde psicológica dos seus colaboradores.

Neste caso, como se deve comunicar? E o que não se deve fazer?

Comunicar a psicologia é um verdadeiro desafio para qualquer profissional da área da comunicação. E isto porque é uma ciência que foi muito mal tratada e descurada ao longo dos últimos largos anos, não existindo uma Ordem profissional – que surgiu há apenas 11 anos e com 20 anos de atraso – que refutasse uma percepção errada e até ingénua de que “só vai ao psicólogo quem é maluco” ou que “o psicólogo só serve para desabafarmos”. Portanto, e através de uma resposta simples mas não simplista, é determinante apostar na literacia psicológica e nos benefícios da psicologia nas mais variadas áreas e contextos enquanto ciência.

As empresas/marcas podem ou devem associar-se também a este tema?

Uma em cada cinco pessoas sofre ou irá sofrer de um problema de natureza psicológica, sendo que Portugal está no “top” dos países da OCDE onde se consomem mais ansiolíticos per capita. Paralelamente, temos somente 250 psicólogos nos Cuidados de Saúde Primários. Ora, isto revela a dimensão do problema social e de saúde pública que temos no nosso país e a falta de acessibilidade aos serviços de Psicologia para as milhares e milhares de pessoas que não têm meios para recorrer ao privado. Neste momento, temos cada vez mais organizações a associar-se a este tema (especialmente nesta altura) e, por outro lado, tem-se verificado um comportamento interessante: as organizações em Portugal ganharam consciência de que, caso queiram sobreviver, têm de ter o melhor dos seus colaboradores – neste sentido, a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) lançou a campanha “Mais Produtividade”. De forma global, temos todos de ter em consideração que não podemos recuperar o País sem antes recuperarmos as pessoas.

E qual o impacto dos influenciadores digitais na partilha de conteúdos sobre saúde mental?

O tema dos “influenciadores” dava para uma nova conversa, mas respondendo directamente à sua questão, acredito que os “influenciadores”, ou mesmo os micro-influenciadores que são cada vez mais uma tendência a ter em conta, têm um impacto muito relevante na partilha de conteúdos sobre a saúde mental ou mesmo como uma forma de partilhar informações úteis sobre a pandemia. Posso adiantar que a OPP tem vindo a trabalhar com “figuras públicas” e “influenciadores”, principalmente aqueles que recorreram a um psicólogo e que podem testemunhar sobre os seus benefícios, e os resultados em termos de alcance e impacto têm sido muito positivos. Agora, também acredito que é importante definir bem que “influenciadores” melhor respondem aos objectivos estipulados e target definido.

Texto de Filipa Almeida

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