Ideias, internet e perigosos idiotas
A vandalização da obra “A Linha do Mar”, de Pedro Cabrita Reis, em Leça da Palmeira, onde vivi, foi motivo de conversas no atelier da Solid Dogma. Discutia-se o valor e o mérito da acção de “intervenção” na obra, que passou por inscrever em spray as palavras “Vergonha” e “300.000 euros”, “isto é Leça” (que não, não é. Não a Leça que eu conheço pelo menos). Não se discutia o mérito da obra de Pedro Cabrita Reis. Discutia-se se aquela acção era ou não essencial para o conhecimento daquele tipo de custo na implementação de uma obra de arte em espaço público.
Aparentemente, existe nessa acção uma crítica ao valor do dinheiro. E ao valor do dinheiro investido em arte. Aparentemente, existe nesta acção a implicação de uma intervenção activista, de justiça popular, contra as forças que gastam o nosso dinheiro mal gasto e eventualmente contra o ecossistema que permite que artistas ganhem a vida.
Vou passar por cima de duas questões essenciais para chegar onde quero – o valor de uma ideia no enriquecimento da discussão sobre o valor da arte, sobre o valor do dinheiro e sobre uma dialéctica social positiva acerca do valor da cultura e da falta de diálogo que existe entre a indústria da arte e da cultura e uma sociedade que não a parece entender, ou valorizar a sua contribuição.
A primeira questão tem que ver com a imprensa: numa sociedade com um quarto poder com condições para estar atento ao que se passa à sua volta para lá da politica, das celebridades e do futebol, estas questões poderiam ser devidamente levantadas e enquadradas e discutidas no espaço público, de forma construtiva, não como reacção, como aconteceu, mas antecipando o tema.
A segunda, com a eventual existência de um universo preferencial de artistas públicos, e se isso é verdade, da legitimidade ou não dessa preferência. Mas estas são questões para outra crónica. Aqui interessa-me colocar em oposição duas formas de intervir no espaço público de forma crítica, aproveitando o poder que uma intervenção activista e de guerrilha tem nas redes sociais, mas identificando os perigos de uma e os méritos da outra.
A outra é a obra “Comedian”, de Maurizio Cattelan, exibida no último Miami Art Basel, que terá disputado o título de “Meme de Natal de 2019”. Obra que consiste numa banana colada com fita prateada numa parede e que foi comprada por 120 mil euros. E na continuidade desta obra, a obra performativa que a ela se seguiu, por outro artista, David Datuna, que resolveu comer a dita banana e substitui-la pela inscrição “Epstein didn’t kill himself”.
De imediato um director da “Galeria Perrotin” veio a público dizer que não havia qualquer tipo de problema em ter sido comida, porque a banana era a ideia e o certificado que com ela vem, e que a própria banana em exposição era substituída com frequência.
O que importa aqui?
1. Em primeiro lugar, o valor da obra de Catellan e a crítica implícita (embora totalmente institucionalizada no contexto a que a crítica se dirige) à forma como a arte é valorizada, à moralidade dessa valorização;
2. Em segundo lugar, acerca do valor das ideias, do que é conteúdo e forma, da força de um pensamento e da glória de o saber veicular de forma a que se torne um artefacto cultural;
3. Em terceiro, a acção de guerrilha e obviamente oportunismo artístico que critica a crítica feita em zona de conforto e baralha todos os parâmetros do que se pode ou não considerar arte ( neste caso performativa, que implica o simbolismo crítico, mas também o acto físico de comer a banana) e/ou crime;
4. Em quarto, o impacto que tudo isto tem no mundo e no aspecto construtivo, positivo e progressista que resulta desse impacto e das discussões que gera;
5. Existe criação.
Na vandalização da obra de Pedro Cabrita Reis, não existe nada disto.
1. Existe anonimato;
2. Existe desconhecimento do ponto de vista defendido – o que é a vergonha?:
– A obra em si
– O Estado investir em arte e cultura – lembro que o nosso orçamento é menos de 1% para cultura
– O Estado investir em nomes mais ou menos recorrentes
– A obra estar ali na marginal de Leça
– O valor em causa;
3. Existe a criação de suspeição política – quem tem a informação, a do valor da obra? Quem tem a iniciativa? Quem executa? O spray é escolhido porque foram “putos do graf” a fazer, ou porque há a intenção de criar essa suspeita e simbolizar “revolta popular”?;
4. Existe a criação de um clima de ódio, agressividade, crítica cega e desinformada, e a inexistência de uma discussão válida sobre o valor da arte, do espaço público, do dinheiro investido em cultura, dos artistas;
5. Existe destruição.
Pedro Pires
CEO/CCO Solid Dogma
Artigo publicado na edição n.º 282 de Janeiro de 2020