Há um novo fenómeno em Marketing. E não é Inteligência Artificial

Por Miguel Magalhães, Senior Brand Manager na Procter & Gamble e Docente no IPAM 

«A ciência teve um impacto inegável em áreas como a medicina, economia e psicologia. Em 2010, Byron Sharp dizia que estava na altura de ter impacto em Marketing. Mais de uma década depois, vemos e vivemos esse impacto mais do que nunca.»

Desde o lançamento público do ChatGPT que a discussão de Marketing se tem centrado nos vários temas da Inteligência Artificial. E como já é comum na nossa área, e particularmente em países de língua portuguesa, a procura pela “next big thing” vem descurar e até mesmo negligenciar outros avanços que merecem uma atenção e nível de discussão semelhantes.

Em Janeiro deste ano, o Instituto Ehrenberg-Bass, liderado por Byron Sharp, produziu um artigo que vem confirmar um novo fenómeno – a “cientificação” do Marketing. O artigo critica teorias não científicas que dominam a área, tal como o STP de Kotler ou os 4Ps de McCarthy, e propõe uma diferente abordagem à construção de marca. Mas mais do que a proposta do artigo, vale a pena analisar o que o mesmo significa para o presente e futuro do Marketing. Neste artigo de opinião, procuro introduzir o tema e estabelecer a base para uma série de futuras reflexões sobre os tópicos centrais da ciência de marketing.

Sobre o Instituto Ehrenberg-Bass, Byron Sharp e Jenni Romaniuk

O Instituto Ehrenberg-Bass é o maior centro de pesquisa de marketing no mundo, sedeado na Universidade do Sul da Austrália. Inicialmente chamado Marketing Science Centre, passou a chamar-se Ehrenberg-Bass, face aos contributos de Andrew Ehrenberg e Frank Bass, dois famosos académicos que dedicaram as suas carreiras a descobrir leis científicas de marketing e comportamento do consumidor. Actualmente, o instituto é visto como, o que posso melhor descrever, uma espécie de Biblioteca de Alexandria do Marketing.

O instituto ganhou popularidade internacional particularmente com as contribuições literárias de Byron Sharp, director do instituto. A principal foi How Brands Grow, um livro sobre construção de marca que desmistificou o Marketing e teve impacto na carreira de vários profissionais e académicos da área. O livro tornou-se um dos mais vendidos em Marketing e Negócios e é ainda hoje visto como o mais influente da área.

Ao sucesso do How Brands Grow, seguiu-se o Marketing: Theory, Practice and Evidence e o How Brands Grow 2, com co-autoria de Jenni Rommaniuk, que escreveu também o Building Distinctive Assets. A Jenni é hoje uma das profissionais de Marketing mais influentes do mundo, e o seu trabalho em distinção (a não confundir com diferenciação) estabeleceu uma base de conhecimento que nos permite melhor avaliar trabalhos como, no panorama nacional, o re-branding da Mimosa e os erros por trás do mesmo.

O artigo: a crítica às teorias do marketing mix (ou 4Ps) e STP

Tal como é comum noutros trabalhos literários de Byron Sharp, John Dawes e Kirsten Victory, o novo artigo destes autores começa por apontar defeitos às teorias estabelecidas em Marketing. O primeiro são os 4Ps, introduzidos por Jerome McCarthy nos anos 60 (com base no marketing mix de Neil Borden, apresentado no início dos anos 50), que classifica as actividades de marketing entre produto, preço, distribuição e comunicação. Neste modelo, a responsabilidade dos profissionais de marketing é vista como a optimização do marketing mix, de forma a encontrar o mais atractivo e lucrativo.

Na sua critica, os autores abstêm-se dos 7Ps, os 15Ps, ou outras extensões do marketing mix. Em vez disso, a crítica é feita à essência do próprio modelo, que é limitativo enquanto base de conhecimento e pensamento. Os autores apontam sérios problemas do modelo quando exposto ao contexto científico, e dão alguns exemplos:

·        Produto. O falhanço é comum em lançamentos de novos produtos que foram classificados por consumidores e especialistas da indústria como exemplos a seguir.

·        Preço. A elasticidade de preço, particularmente em grandes marcas, é extremamente baixa.

·        Comunicação. Testes a anúncios publicitários podem mostrar retornos de investimento próximos de 0, até mesmo quando o investimento é o dobro.

No geral, o argumento é que vários estudos científicos concluem que mudanças no marketing mix não resultam em aumento de vendas ou ganhos de quota de mercado significativos. E que, por si só, a teoria do marketing mix falha em descrever as dinâmicas da prática de marketing.

A crítica ao STP vai além deste artigo e é, na minha opinião, mais bem fundamentada do que as críticas aos 4Ps. Tal não se deve por uma teoria ser melhor do que a outra – aliás, são complementares, sendo que STP adopta um papel estratégico e os 4Ps um papel tático –, mas porque STP é uma teoria mais completa e, consequentemente, é mais propícia a apresentar falácias.

Por exemplo, profissionais e académicos promovem STP como sinónimo de estratégia de marketing. No entanto, segmentação é pura análise e deve ser trabalhada como tal. Como diz Mark Ritson, se tiveres concorrência directa tão inteligente como tu, a segmentação que farão será quase idêntica à tua. Porque estão a descrever e a analisar o mesmo mercado. A estratégia começa quando começamos a tomar decisões – não só o que escolhemos, mas, acima de tudo, o que NÃO escolhemos.

Uma outra crítica comum é como o conceito de targeting levou profissionais de marketing a focar-se demasiado em nichos de mercado. O marketing digital foi um acelerador deste problema, ao levar profissionais a adoptar micro-targeting e nano-targeting como práticas da gestão de marketing. Esta abordagem traz vários problemas, entre os quais: as empresas tornam-se míopes e falham oportunidades de mercado e segmentos mais atractivos que não identificam; e limitam-se e envelhecem com os segmentos que seleccionaram, tornando a adaptação a novas dinâmicas e comportamentos do mercado mais difícil.

Como alternativa a estes preceitos, a ciência de marketing descreve um vasto número de leis sobre padrões de compra e como estes determinam o crescimento das marcas. Na base destas leis e crescimento, estão a presença física e mental. Presença mental refere-se à probabilidade com que os compradores pensam facilmente na marca em momentos de compra e reconhecem-na rapidamente. Presença física refere-se à probabilidade com que os compradores compram a marca numa dada variante, quantidade e preço que vai ao encontro das suas necessidades de compra. Essencialmente, o objectivo de ambas é fazer com que uma marca seja mais fácil de comprar, para mais pessoas, e em mais situações de compra.

O artigo: observações empíricas que sustêm uma teoria alternativa

Como ponte entre a crítica e a apresentação da sua teoria, os autores revelam um conjunto de observações empíricas que contradizem os seguintes preceitos de STP:

a)        Servir segmentos específicos melhor do que concorrentes,

b)        como resultado da diferenciação da marca,

c)         o que aumenta a satisfação do cliente,

d)        e gera repetição de compra.

Os autores apresentam cinco observações, mas para simplificar resumo-as em quatro ideias chave e dou algum contexto.

Devemo-nos focar em compradores de categorias, não em segmentos

A popularidade da segmentação cresceu em países de língua portuguesa com livros como o This Is Marketing de Seth Godin, que falava “tribos” e como as marcas deveriam identificar e forcar-se nesses grupos de consumidores. Esta teoria acelerou a “tatificação” de marketing e confundiu profissionais e académicos, levando à generalização de abordagens como micro-targeting ou simplificação excessiva de análise resultando, por exemplo, em personas (uma prática que prejudica mais do que ajuda). A par disto, os estudos científicos mostram-nos uma realidade diferente.

A Lei da Duplicação de Compra, por exemplo, demonstra que todas as marcas concorrentes partilham consumidores com outras marcas na categoria. Sugere ainda que as marcas crescem ao adquirir compradores de todos os concorrentes e não de segmentos. Os autores dão o exemplo da Monzo, uma pequena marca que duplicou a penetração de mercado (i.e., percentagem de uma dada população que compra uma oferta; a não confundir com quota de mercado) no espaço de quatro anos. A marca, da categoria da banca e serviços financeiros, cresceu não ao focar-se num segmento específico, mas ao atrair o máximo de consumidores de todas as marcas concorrentes na categoria. Este padrão de crescimento contradiz um dos preceitos de STP de que é necessário identificar e seleccionar um mercado.

Os autores salientam ainda outras descobertas que, embora surpreendentes, são baseadas em dados empíricos e contradizem as actuais práticas de targeting: i) em várias categorias analisadas, como retalhistas, hotelaria ou cruzeiros, não existem diferenças significativas na demografia, atitudes ou utilização de média; e ii) numa análise a 52 categorias de produto, em que procuraram potenciais variáveis de segmentação, conclui-se que variáveis demográficas ou psicográficas não são úteis para prever preferência ou intenção de compra.

Cada vez mais, vemos novos dados que contradizem abordagens de targeting, sendo esta actualmente uma das teorias mais atacadas. A alternativa a esta abordagem é o sophisticated mass marketing, popularizado por Byron Sharp, e foca-se em criar presença mental no maior número possível de compradores de uma dada categoria.

Diferenciação não é necessária para um comprador escolher uma marca

O conceito de diferenciação, central às teorias populares de posicionamento, sugere que os consumidores tomam decisões com base em diferenciação percebida versus ofertas concorrentes. Embora os cientistas do Instituto Ehrenberg-Bass admitam que esta teoria é observável, apontam que não é suficientemente significante para o crescimento das marcas. Ao invés, distinção e familiaridade têm um papel muito mais importante, sendo a atenção e investimento de marketing deverá estar em tornar a marca facilmente reconhecível e notável em momentos de compra.

Os autores salientam estudos que comprovam este argumento: i) mesmo em marcas de maior sucesso num mercado, apenas 1 em 10 compradores afirmam que a marca que usam é “diferente” ou “única”; e ii) um estudo a mais de 6000 marcas ao longo de um período de 10 anos, revelou que a percentagem de pessoas que apontaria uma marca como “diferente de outras marcas” numa dada categoria é bastante baixa.

A diferenciação é dos mais polarizantes em marketing na actualidade, mas a discussão ainda não chegou a Portugal com a mesma intensidade que em como o Reino Unido. Para cada estudo que comprova diferenciação, outro desmente-a, o que tem levado o debate a forcar-se mais nos métodos científicos utilizados. Por enquanto, diferenciação continuará na agenda das marcas, mas deve ser avaliada como uma de muitas variáveis de presença mental, e não como uma constante única.

Satisfação não é indicativo de crescimento de marca

A satisfação dos clientes é um dos mais populares conceitos no mundo dos negócios e ganhou maior popularidade desde que a Bain & Company introduziu o Net Promoter Score (NPS) no início dos anos 2000. E, embora o NPS tenha dominado a prática empresarial como das métricas mais comuns, estudos mostram que o nível de satisfação dos clientes não tem qualquer relação com quota de mercado.

Uma outra conclusão que complica a defesa desta métrica e prática é que cerca de metade dos compradores de uma dada marca apontam níveis de satisfação diferentes apenas seis semanas depois de uma análise inicial, apesar de não terem qualquer novo encontro com a marca durante esse tempo. Os autores admitem que é bom ter clientes satisfeitos, mas não devemos considerar esta métrica como indicadora que qualquer crescimento de marca ou negócio.

O conceito da lealdade das marcas, como o conhecemos, é um mito

A lealdade é uma das maiores buzz words em Marketing. Está fortemente ligada à teoria de STP e narrativas como a de Seth Godin em This Is Marketing. Pressupõe que as “tribos” criam-se por haver segmentos que são extremamente leais a uma dada marca. A Harley Davidson é dos exemplos mais comuns. No entanto, a lealdade é igualmente um dos tópicos mais desmentidos na ciência de marketing (particularmente com o trabalho de Byron Sharp) e os estudos mostram-nos uma realidade diferente. Por exemplo, no caso da Harley Davidson, os compradores tendem a comprar outras marcas duas vezes mais do que compram Harleys (e esta é uma métrica comum).

A Lei da Dupla Penalização sugere que a lealdade é dependente do tamanho da marca (i.e., quota de mercado), mas não constituiu esse tamanho. Isto é, as marcas mais pequenas têm lealdade (um pouco) mais baixa e as marcas maiores têm uma lealdade (um pouco) maior. Posto isto, as quotas de mercado mais altas devem-se, numa maioria esmagadora, ao tamanho da base de compradores dessa marca, e não à lealdade percebida.

Byron Sharp explica-nos que a prática de marketing não consiste em levar os consumidores a apaixonar-se pela nossa marca ou fazê-los acreditar que somos a única marca para eles e todas as outras são lixo. É, sim, uma batalha para facilitar consumidores a comprar a nossa oferta. E essa é uma batalha por presença física e mental.

O resto do artigo apresenta a teoria alternativa dos autores, centrada nos activos de mercado (presença mental e presença física), e o qual recomendo a leitura. A teoria em si merece uma análise profunda, pelo que a deixarei para um outro momento.

O que nos espera o futuro e como devemos, na minha opinião, encará-lo

As descobertas da ciência de marketing  poderão ser pesadas, e até mal recebidas, por parte dos profissionais e académicos da área. É natural que tal aconteça, sendo que a base de conhecimento prática e teórica de marketing são substancialmente teorias de Kotler, agora activamente criticadas por cientistas.

No entanto, devemos ver estas descobertas como um sinal de progresso e amadurecimento da disciplina. E acima de tudo, porque representam a verdade, ou o caminho mais próximo da verdade. Este caminho, que acredito marcará o futuro do Marketing, é espelhado na forma como os autores começaram as conclusões do artigo – com uma citação de Richard Feynman, Prémio Nóbel da Física em 1965:  «Não importa o quão bonita é a tua teoria, não importa o quão inteligente és. Se a teoria não concordar com o experimento, está errada.»

A ciência teve um impacto inegável em áreas como a medicina, economia e psicologia. Em 2010, Byron Sharp dizia que estava na altura de ter impacto em Marketing. Mais de uma década depois, vemos e vivemos esse impacto mais do que nunca. E se há algo a retirar deste fenómeno, é que o debate de Marketing deve-se tornar muito mais completo do que aquele que temos tido até agora. A área exige um novo nível de entusiasmo, foco e maturidade.

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