Filipa Fixe (Glintt): «É urgente estar à frente da mudança tecnológica»
A pandemia de COVID-19 veio acelerar a transformação digital no sector da Saúde, com impacto directo sobre todo o ecossistema, desde as unidades hospitalares às farmácias. Tecnologias como a Inteligência Artificial ou as teleconsultas afirmam-se definitivamente como um meio auxiliar para melhorar a qualidade dos serviços prestados, mas podem ser também o garante da sustentabilidade dos sistemas de saúde.
Em entrevista à Marketeer, Filipa Fixe, executive board member da Glintt (cujas soluções de tecnologia são utilizadas em mais de 200 hospitais e clínicas e em 14 mil farmácias na Península Ibérica), explica que as condições tecnológicas já existiam antes, mas a COVID-19 trouxe a “mudança cultural” necessária para a sua massificação.
A pandemia de Covid-19 e as regras de distanciamento social obrigaram o sector da Saúde a acelerar a sua transição digital. Como é que avalia o estado de desenvolvimento digital do sector em Portugal?
Portugal é um país com excelentes condições para pilotar novas soluções e de forma sustentável. Por um lado, é uma excelente montra tecnológica, com as características certas para ser um local muito atractivo para o desenvolvimento de projectos pioneiros na integração da tecnologia no sector hospitalar. E, por outro, a sua dimensão reduzida incentiva também a que o desenvolvimento de pilotos, do ponto de vista económico, tenha um risco reduzido.
De acordo com o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal assume uma posição muito interessante no que respeita a estatísticas relacionadas com a adopção de tecnologia: em 2019, a informação de saúde disponibilizada online situava-se nos 50,7% vs. 46,3% nos restantes países da OCDE.
Perante esta realidade, Portugal é um país pioneiro e um modelo de sucesso em muitas iniciativas relacionadas com a transformação digital na área da Saúde. A adopção massiva do Processo Clínico Electrónico é um excelente exemplo disso, assim como a rápida adopção da prescrição médica electrónica de medicamentos a nível nacional, que tem benefícios clínicos com um claro impacto na estrutura de custos para o País, sendo considerada uma referência europeia.
Neste sentido, acredito que Portugal e, fundamentalmente, os vários stakeholders do ecossistema da saúde detêm a motivação certa para contribuir para um país extremamente competitivo na digitalização e sustentabilidade do sector da Saúde.
A integração da tecnologia é a chave para, por um lado, baixar custos operacionais e, por outro, retirar alguma da pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
A tecnologia é um meio para atingir um fim: melhorar a saúde e a qualidade de vida de todos nós. Mas deve ser percepcionada também como uma forma de promover a produtividade e a eficiência de uma instituição de saúde.
Já não é possível falar de saúde sem considerar o papel da tecnologia. Os softwares que hoje existem permitem criar perfis e acompanhar cada utente, desde a fase da prevenção ao tratamento, possibilitando assim melhores cuidados de saúde, a custos controlados. A tecnologia assegura, cada vez mais, a sustentabilidade dos sistemas de saúde.
Assim, torna-se urgente estar à frente da mudança tecnológica, com recurso a serviços que coloquem o cidadão no centro. Um exemplo claro é a Linha Saúde 24 que, à distância de um contacto telefónico, não só auxilia o cidadão no diagnóstico, como também permite identificar os casos mais graves que devem seguir para as urgências hospitalares, facilitando assim o trabalho dos profissionais de saúde, libertando a pressão nos serviços hospitalares tipicamente muito dispendiosos.
Em que áreas existe ainda potencial para implementar tecnologia e ter ganhos de eficiência?
Por exemplo, no caso das triagens num hospital. São processos morosos, de longas esperas e períodos sem qualquer tipo de informação. A triagem podia ser feita, por exemplo, por um algoritmo pré-definido e/ou com um chatbot, dependendo da severidade, que identifica se o utente tem de ir para uma sala de urgência, se pode ser atendido remotamente através de teleconsulta ou se deve ir a uma unidade de cuidados primários.
As unidades hospitalares também sabem que é cada vez mais difícil ter camas para todos os doentes, pelo que algumas situações clínicas podem e devem ser controladas à distância, através de telecuidados 24 horas por dia, sete dias por semana – reduzindo assim situações de emergência e melhorando a tomada de decisões clínicas e os resultados em saúde.
Com o apoio da tecnologia, conseguimos aliviar o sistema e melhorar a percepção do utente sobre os sistemas de saúde. Por outro lado, estamos também a permitir que os médicos, enfermeiros e terapeutas se possam dedicar aos casos que necessitam de mais atenção.
Caminhamos para uma visão centrada nas pessoas, onde a tecnologia é a base. A informação sobre cada um de nós deve acompanhar-nos na nossa trajectória em saúde e não em silos por cada unidade de saúde. Só assim vamos conseguir uma melhor sustentabilidade na área da Saúde com melhores resultados para cada um de nós: viver mais anos e com mais qualidade de vida, assegurando a gestão da saúde e não da doença.
Com mais de 200 clientes no sector da Saúde em Portugal, entre hospitais e clínicas, que papel é que a Glintt tem tido na adopção destas tecnologias no mercado nacional?
Perante esta pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, a nossa resposta tinha de ser rápida, porque a transformação não podia esperar. No dia 8 de Abril desenvolvemos, juntamente com a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma ferramenta gráfica destinada a ser utilizada por especialistas seniores em planeamento de cuidados de saúde e decisores políticos, a ADAPTT Surge Planning Support Tool.
Esta ferramenta é flexível, permitindo que os utilizadores dos vários países insiram os seus dados epidemiológicos, variem os cenários de mitigação e adaptem a ferramenta a diferentes attack rates. É ainda possível determinar os incrementos de necessidade de recursos humanos, devido à probabilidade de infecção dos profissionais de saúde.
Apostámos também em soluções de vídeo-consulta através do nosso software hospitalar – o Globalcare – em conjunto com um parceiro, a Hopecare.
Em que medida é que a pandemia de COVID-19 vai impactar o sector da Saúde nos próximos anos?
Várias são já as tendências tecnológicas que começam a surgir e a intensificar-se, como é o caso da Inteligência Artificial (IA), que promete revolucionar a prestação de cuidados de saúde. A premissa de que os dados são a nova “healthcare currency” tem culminado numa aposta cada vez mais visível em ferramentas de IA. Um exemplo disso são as assistentes virtuais de saúde, que podem ser os personal trainers do próprio doente, prestar informação e até ser uma companhia.
Do ponto de vista da gestão hospitalar, a IA pode também auxiliar os gestores na tomada de decisão, através da análise de informação e do cruzamento de dados disponibilizados nos vários sistemas de informação.
A telemedicina é outra grande tendência que pode melhorar o acesso a cuidados de saúde por parte dos cidadãos, localizados em geografias mais remotas e com menores condições de acessibilidade e de mobilidade. Este conceito tem vindo a traduzir-se na realização de consultas à distância (teleconsulta) e na monitorização remota de doentes em situações mais frágeis (telemonitorização).
Uma das aplicações mais interessantes da telemedicina nos centros de saúde pode passar pela realização de consultas de especialidade, nomeadamente em situações de pré-operatório em que o follow-up do médico pode ser efectuado de forma remota. Desta forma, o doente poupa deslocações ao hospital que causam desconforto e contribuem para custos desnecessários.
Ultrapassada a pior fase, o choque, temos agora uma oportunidade única para repensar a forma como podemos melhorar a nossa vida em sociedade tendo como aliada a tecnologia. Conseguiu-se nos últimos meses o que durante anos tentámos, muitas vezes sem sucesso, por visões estereotipadas sobre as consequências de utilização de tecnologias de forma mais massificada. Houve uma mudança cultural, que é a mais difícil de operar. Cabe-nos a nós – que trabalhamos no sector das tecnologias – saber aproveitar com responsabilidade e sentido de oportunidade as possibilidades que estão abertas e acelerar a implementação de inovação e de tecnologia na Saúde.