Fake you, Covid-19! Ou talvez não

Por José Godinho Marques, director Criativo da Tux&Gill

Não há marca que não ambicione aparecer como best-seller do dia para a noite. Todas as marcas pretendiam que a sua comunicação se tornasse viral, no explodir do digital. Comprem-se likes, então. Amor instantâneo. Fake it until you make itIsto foi ontem.

Mas falemos do anteontem: os que ainda estão alguns furos abaixo dos 50 anos nunca experienciaram verdadeiramente as inacreditáveis privações que um estado de sítio, de guerra, de emergência, pode gerar. Sim, sempre tivemos prateleiras de mercearias e supermercados meticulosamente bem arrumadas, e especialmente bem supridas de papel higiénico perfumado e de dupla folha. E assim, candidamente, nascemos e crescemos felizes, no conforto de uma dupla certeza inabalável: que vamos pagar muito dinheiro ao Estado e que vamos morrer, de preferência mais tarde.

E vamos saboreando tudo o que se nos apresenta como garantido, com a sensibilidade de uma anémona, dando primazia ao ter (ainda que alegoricamente falando) antes do ser. E ao tudo prometer sem fazer acontecer. Surgem assim os necessários fenómenos de perda de tempo. Desse ter tudo virtualmente no momento, numa paragem cerebral premeditada e prazerosa.

Veja-se o fenómeno das influencers sem nada de novo para dizer. Veja-se a tontice do unboxing. Veja-se o TikTok e a criatividade pequenina e condicionada que origina milhões de danças desengonçadas. Veja-se a ocupação selvática do nosso intelecto com aberrações de YouTube, com hordas de seguidores, um deles capaz de humilhar a namorada perante essas gigantescas audiências de crianças e adolescentes. E está tudo bem. E assim vamos encarneirando estoicamente, acreditando na cultura e na educação em pequenos écrans, sem olhar para a big picture que é o Universo.

E agora, a fake new: O Universo explodiu. Implodiu. Sucumbiu. Piu. Ou talvez não. Ou talvez sim. Talvez do Corona, sim: neste zig-zag, 11 milhões de carneiros podem ser um problema grave, nesta era das Fake News. Fake Promises. Fake Dynamics. Do Fake it all. Ninguém se lembra do racionamento e das senhas nos períodos de guerra. Poucos se lembram da gripe espanhola de 1918, a não ser que já tenham passado dos 110 anos, mais coisa menos coisa. Ninguém se recorda do que é voltar de África com a roupa que se trazia no corpo. Porque recordar dá trabalho. E num período de calamidade mundial, podemos invocar os pensamentos do Victor Espadinha, há quase 50 anos: recordar é viver. Pois. Recordar é prepararmo-nos para o pior, na esperança de melhores dias.

Fomos esquecendo nesta letargia digital em que todos somos influencers de sofá, o quão insignificantes somos, se não remarmos na mesma direcção e, neste caso em particular, a única possível: o humanismo. Ao vermos as prateleiras dos supermercados vazias porque alguém as açambarcou, percebemos como estamos todos tão deseducados e ralados somente com o nosso próprio futuro, sem dar atenção ao presente dos outros, sem olhar para o parceiro do lado que pode precisar de algo, sem olhar para a velhinha do 4.º andar que dificilmente transportará as compras até à sua modesta e desconfortável morada (sim, o proprietário só embelezou o resto do prédio para receber turistas como qualquer neo empreendedor português faz, in a fake but cool approach).

Foi preciso um vírus vindo do outro lado do mundo para que nos distraíssemos dos écrans feitos da fake-vida-perfeita-cheia-de-filtros-bonitos-de-todos-e-mais-alguns. Para que caíssemos na real. Para que, num ápice, o altruísmo, a bondade, o carinho e o amor se tornassem virais num mundo real. Para que, de repente, as pessoas voltassem a olhar para o lado, mesmo sem que o beijo e o abraço sejam possibilidades. Para que as famílias mais cautelosas, por iniciativa própria ou de quem lhes paga o salário, viessem para casa aos poucos, numa normalidade condicionada, de forma a proteger todos os que habitam o seu círculo.

Alguns (demasiados) de nós continuam a assobiar para o lado, ignorando por completo a calamidade que está a assolar o mundo, e não há virologista que consiga combater a estupidez humana. Essa é auto-imune e perdurará enquanto uma nação de fraca literacia viver sob a alçada de um Estado liderado por uma ruidosa companhia de teatro de fantoches. Pagamos impostos altos para nem sequer termos uma liderança e vamos morrendo lentamente enquanto nação, com uma identidade tão forte como uma hamburgueria da esquina ou uma barbearia hipster do bairro. E se um promissor Estado de coligação à esquerda não sabe levar um estado de emergência pela via prioritária da direita, certamente não terá pulso para direccionar uma população potencialmente vítima de um vírus (sim, somos dos países mais envelhecidos do mundo) para o caminho da protecção.

Assim sendo, não serão as maiores marcas responsáveis por um novo paradigma de responsabilidade social, para além da sustentabilidade e afins?

Serão, sim. É o desafio do século, que chega de forma inesperada aos profissionais de comunicação. Acredito que o novo grupo-alvo de cada marca será necessariamente desenhado por amor, unificado e fortalecido briefing a briefing. Se um “grupo-alvo” é suposto ser atingido por setas, então que sejam de cupido e que nos façam voltar a consumir com e por amor. A reiterar que o tempo é afinal (e mesmo) a nova unidade de moeda. O Universo permanece, o resto, acontece. De verdade, e não de forma fake. E se em consciência não consumimos marcas fake, por que razão temos vindo a gastar o nosso precioso tempo dessa forma, a rodos? Porque é o mais fácil para andar por aqui. Difícil é assumir que a vida real tem destas coisas como um Covid-19 e não é com umas rajadas de metralhadora no Fortnite que se resolve, ou com um sumo detox de melancia e sementes exóticas receitado por uma influencer de ginásio.

Depois de uma quarentena assim, em casulo induzido, acredito que renasceremos de asas novas e com quarenta mil razões para voltar a acreditar na humanidade e nas marcas que fazem parte de todos nós. Com relevância e pertinência. O corona vai deixar marcas, sim, mas irá ajudar a repensar e recriar todas as outras. Vai doer.

Assustas, Covid-19. Fake you! Ou talvez não.

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