Europe’s WC. A marca que nos marca.
José Godinho Marques, director criativo independente
Temos tudo. You name it.
Temos tubarões no Tamariz, focas em Cascais e um canguru foragido na Aroeira. Portugal mudou, não é verdade?
E a própria marca Portugal está diferente, foi empurrada para aqui. Há 21 anos, o Pedro Bidarra da BBDO oferecia ao país um conceito que colocava todas as campanhas medianas que se faziam para promover o país no chinelo: “Europe’s West Coast” era a sua proposta, que nos reposicionaria de uma forma organicamente muito superior ao simples turismo portuguesinho, qual ilha de Malta cheia de malta querida e serviçal. Cansado de prosa morninha como “Take a break from the rest of the world” ou “Warm by nature”, Bidarra cria um “Europe’s West Coast” como um sistema brutal de identidade e comunicação muito para além do turismo, que traria todo um conjunto de associações aspiracionais diretas a Hollywood, do Silicon Valley à Baja da California, e por aí fora. O “West” comporta civilização (Comporta, já lá vamos), um lugar de sonhos onde a terra “desagua” no mar, para onde se vai mudar de vida. Foi pena não termos aproveitado este conceito devidamente. Por esta hora, à boleia da neurolinguística, já seríamos muito provavelmente uma nação valente e competitiva no mais velho continente mundial – conceptualmente empoderados e com vontade de arregaçar as mangas, no ensino, na saúde, na tecnologia, na política, na indústria e na agricultura, bem antes do Turismo. Que hoje em dia é alimentado a pastel de bacalhau com recheio de queijo da serra.
Tudo globalizado duas décadas depois, vejamos: não terá o tempo tentado empurrar o país para um sucedâneo deste conceito, mas com um total descontrolo – fruto de uma chegada tardia? Parece que sim. Quando não temos coragem no tempo certo, vivemos na cauda dos outros. Da Europa, no caso. Quem não se lembra das campanhas que nos diziam “Vá para fora cá dentro:”? Todos nos lembramos, mas hoje, na hora de fazer as contas, escolhemos passar férias no sul de Espanha, para um Verano azul quentinho e cheio de tapas – uma tapinha não dói lá – fugindo aos preços do Algarve e às indecências de preços do AirBnB que também vão engordando o porquinho do nosso erário público. É que o turismo massificado tomou conta, e pouco se ouve falar do país, da nação valente, a não ser pelo turismo. Por sorte nasci em Sintra, quando a pseudo-cidade ainda era mesmo uma vila, e a vila era pacata e as crianças podiam viver em modo Tom Sawyer. Voltávamos para casa à hora de jantar, depois de colocarmos as bicicletas na lama, nunca os parentes. Hoje em dia, o hospital onde nascemos é um restaurante, a capela mortuária tem uma esplanada na frente, e cada cubículo é negócio de artesanato chinês e comida que envergonha. Guess what? A minha escola primária virou um hotel de charme. Um boogie woogie de caras e sotaques e filas, numa cidade que, à noite é deserta, fruto dos 54 moradores que ainda lá vivem. Tudo o resto, é negócio do ócio. É parte desta nova marca Portugal. Quem diz Sintra, diz Porto, cada vez menos abrigo. Podíamos ter sido uma Europe’s West Coast. Mas o turismo ofuscou a nossa essência.
De novo: podíamos ter sido uma Europe’s West Coast. Mas o espírito “greedy” do português levou-nos para outro canto, sem Lusíadas, sem estrofes bonitas. Portugal tornou-se um país caro, onde o investimento estrangeiro foi canalizado para o imobiliário e turismo (todos conhecemos um francês que comprou um je ne sais quoi na Comporta, na saudosa Comporta, ou um alemão que investiu numa quinta, numa sexta investiu num prédio, e ao sétimo dia ressuscitou o investimento) e a absurda especulação trouxe indicadores de assimetrias que deixam qualquer um roxinho de vergonha. Os portugueses deixaram de poder comprar casas no país onde nasceram, e pagam rendas com dificuldade. Lisboa poderia ser a nova Miami. Muito turismo, muitos ricos e muitos pobres ao volante de Teslas e Porsches. Muitas pessoas com empregos que não chegam, e que fazem horas extra – por cá viram condutores de tuk tuks fora do expediente para alimentarem as famílias. Pessoas que para manterem as suas casas, não conseguem fazer mais nada na vida. Nem férias, ou outras experiências essenciais. E isto marca. Marca pela negativa, porque se está a criar uma geração de pessoas menos felizes e por conseguinte menos criativas, mais reactivas e menos corajosas. Que deixam as crianças em liberdade nos seus tablets e smartphones, porque já não tem rua para brincar. E isto não é brincadeira. Sinto-me um velho do Restelo a escrever desta forma, mas não estou a conseguir ver salvação para a marca que os nossos políticos criaram, sem estratégia, nem criatividade, nem assertividade. Apenas focados na rentabilidade imediata para que se vá tapando buraquinhos ao sol. Se era para isto, mais valia termos feito campanhas de promoção mais honestas, como “Portugal. Venha brincar aos Pobrezinhos.” Porque no fim do dia e fora do Verão, a água está gelada com marés vivas, a temperatura do ar nem sempre é incrível, chove a cântaros e as pessoas vivem em défice económico. Estamos na fase do overwhelming, não é?
Na sua última campanha, o Turismo de Portugal pede aos turistas para fazerem um turismo consciente. Para não deixarem marca. “Don’t be a tourist. Be a futourist”. Goste-se ou não da execução criativa, a verdade é que o desespero levou aqui. Por um lado, quer-se qualidade, mas por outro, se o turismo desaparece, a economia estagna. Dito tudo isto, a verdade é que até os tubarões já nos chegam à costa, qual mar da West Coast americana. Até se interdita a praia do Tamariz à conta do bichinho. Temos focas a aparecer na praia de Cascais. E temos um canguru à solta na herdade da Aroeira – será que o Mike Tyson vendeu a sua moradia modesta no Nevada e comprou casa por aquelas bandas? Talvez. No meio de toda esta barbárie de identidade, fica muito difícil construir um briefing para vender a marca Portugal, neste momento. Seja ao turismo, seja ao investimento. No fundo, vender a marca a quem possa olhar para este país maravilhoso com boas intenções. Porque em boa verdade, já nada disto é muito nosso. O que poderia ser uma imensa Europe’s West Coast, tornou-se numa imensa Europe’s WC, onde o mundo se refresca depois de deixar alguma matéria orgânica. Isto marca-nos muito, viver no WC. Será que o Pedro Bidarra ou o Eduardo Aires conseguem ajudar a simplificar e encontrar a chave da porta? Acredito que sim. Precisamos de olhar para Portugal como um enorme Escape Room, e encontrar as respostas certas. Não é brincadeira.