Empreender e Julieta
Por João Cardoso, Brand strategist no erb’s creative studio
Ao contrário de Romeu e Julieta, que representa uma história trágica, Empreender e Julieta é a peça que representa a utopia perfeita. A resposta para todas as questões filosóficas que foram colocadas ao longo da nossa história. É a visão de uma realidade que ambicionamos, uma mistura entre a tragédia e a comédia, narrada por dramaturgos que pregam a acção que não têm.
Onde é que quero chegar com isto? Está por esta altura a questionar-se… Garantias, frameworks, fórmulas milagrosas e exemplos utópicos de casos de sucesso. É disto que vive (na sua maioria) a doutrina do empreendedorismo, uma doutrina que vende (quase única e exclusivamente) sonhos.
Zappos, Apple, Netflix, Airbnb e Uber são alguns dos nomes mais ouvidos em mentorias e eventos de empreendedorismo em Portugal. Posso estar enganado, mas julgo que todas estas empresas valem um bocadinho mais de mil milhões. Eu sei que Portugal também tem unicórnios e não sei quê, mas não acha que podemos estar a levar demasiado à letra este conceito? Antes que passemos totalmente para o mundo da fantasia, permita-me que atire para palco o calhau da realidade.
Segundo a Pordata, em 2020, as microempresas correspondiam a 96% do tecido empresarial português. Sabe o que é que isto significa? Que é pouco provável que a sua empresa vá ser o próximo unicórnio. É mau? Não. Se conseguir chegar aos 2 anos de vida com a empresa aberta já é uma vitória, visto que a taxa de mortalidade das empresas para esses prazos é de 42% (também segundo a Pordata).
Há uma cultura romantizada de que todos vamos criar o próximo unicórnio, todos vamos ter uma marca de sucesso e – a minha favorita – não precisamos de dinheiro para empreender.
Algures num outro artigo mencionei um estudo levado a cabo pela Havas Media Group que diz que 74% das marcas podia desaparecer amanhã e ninguém se importaria. Sabe o que é que isto significa? Que também é pouco provável que a sua marca seja uma das maiores e mais reconhecidas do País. Não quer dizer que não possa ser, mas ninguém lhe pode garantir isso.
Em relação ao começar um negócio sem dinheiro, perdoe-me se sou ignorante, mas o Priberam diz que um negócio envolve transacções comerciais. Criar um negócio sem dinheiro não foge um bocado ao conceito? Ainda que não fuja, conhece algum negócio que tenha começado sem ter um cêntimo investido? Na dúvida, pergunte aos unicórnios se chegaram ao país das maravilhas com recurso a desejos e fadas madrinhas.
A justificação mais comum é que podemos fazer muita coisa antes de começar o negócio para as quais não necessitamos de dinheiro. É certo, podemos sim. Mas não se esqueça de uma coisa: enquanto pensa em criar o seu negócio, o seu corpo é capaz de precisar de comida, água e você é capaz de precisar de um tecto. Se quiser falar com pessoas, é capaz de ter de se deslocar ou de ter pelo menos acesso à internet. É um familiar que paga? Pode ser, mas não deixa de ser um investimento, neste caso feito por um “parent-investidor”. Acredito que talvez possamos estar perante um problema de interpretação ou de semântica.
Permita-me que atire mais uma pedra.
Não acha que está na hora de nos deixarmos de discursos motivacionais constantes e começarmos realmente a trabalhar? Não me interprete mal, estes discursos são importantes (eu oiço e faz efeito), mas acredito que se adicionarmos uma dose de realidade, com exemplos que representem a maioria do tecido empresarial do mercado onde se encontram, podem ser mais eficazes.
Faço-lhe a seguinte pergunta: como é que se vai sentir o empreendedor que comprou um curso ou uma mentoria com headlines como “Dos 0 a 1 milhão em 7 dias” ou “Cresça 700% em 6 meses” e afirmações como “RESULTADOS GARANTIDOS!” quando perceber que é mais provável bater com a cabeça no frigorífico quando vai buscar o queijo de manhã do que criar um unicórnio? E que, afinal, os resultados garantidos faziam parte do país das maravilhas? Pois é, provavelmente esta parte já não terá grande interesse para os dramaturgos que pregam esta doutrina (talvez porque já venderam), mas tem certamente um grande impacto na vida de quem comprou.
Estamos a tentar criar empreendedores ou a vender ar de Fátima? Fica a dúvida. No fundo, o que este leigo acha é que deve seleccionar o seu meio com carinho.
Sonhar é bom, ambicionar também, objectivos elevados ajudam-nos a progredir e a ultrapassar alguns limites, mas julgo que o caminho não passa pela romantização excessiva do tema. Há bons mentores, bons cursos e bons eventos, por isso se quiser ver uma boa peça, escolha bem o teatro.
O final desta ainda está por decidir, para uns será uma tragédia, para outros uma comédia, depende da pinta do narrador.
Obrigado por ter dedicado um tempinho a ler isto, agora vá, vamos trabalhar!