Do trocadilho

tiagoviegasTalvez por estarmos na silly season, talvez por eu próprio ser um pouco silly (independentemente das seasons), ou talvez porque o calor convida a um tema mais leve do que o habitual (ou isso ou a um gin tónico, ainda que entre ler este texto e beber um gin tónico eu escolheria sem pestanejar o segundo, mas tudo bem), hoje queria falar-vos um pouco daquela que é, provavelmente, uma das figuras criativas mais injustamente desprezadas nesta indústria nos dias que correm: o trocadilho.

Ou, em versão menos silly (mas só um bocadinho menos silly), hoje gostaria de falar-vos um pouco do pedantismo intelectual com que uma boa parte dos meus pares tratam a respectiva figura em particular e o acto de criar para publicidade em geral.

Em nome da “liberdade de pressão” (STRAT, para Superbock), que fique bem claro: eu gosto de trocadilhos. Gosto e pronto.

E quem estiver mal com isso que se mude e vá pedir campanhas e emprego a outro.

A questão é que, como em tudo na vida, também nos trocadilhos há que saber reconhecer os “Frangamente bons” (JWT para Kentucky Fried Chicken), os “assim-a-CIN” (alguém que eu não sei quem é, para tintas CIN) e finalmente aqueles que dão azia só de olhar para eles (“não há bela sem limão”, como dizia alguém que eu também não sei quem é a propósito do Ice Tea).

É óbvio que “nem só de trocadilhos vive o homem” (Eu próprio, para efeitos desta crónica, ainda que tenha dúvidas que seja o primeiro a fazê-lo) e que o trocadilho não é a resposta para tudo. Aliás, longe disso. Mas isso não quer dizer que, de vez em quando, se for bom, não seja um verdadeiro “Galp de mestre” (BBDO, para Galp) – que é como quem diz, facilmente compreensível e altamente memorizável para quem os ouve ou os vê (que é mais do que podemos dizer de 99% das mensagens publicitárias que habitam as nossas rádios, televisões e afins meios impressos).

O truque está em encontrar um (trocadilho) que nos permita chegar ao cliente e dizer com orgulho: “Sintra-se seguro” (alguém que desconheço, em campanha de prevenção rodoviária para a Câmara Municipal de Sintra) e fique descansado, que este trocadilho “é a sua carga” (BBDO, para Nissan).

Mas não. A indústria não olha para os trocadilhos “com bons óleos” (alguém que, uma vez mais, não sei quem é, para uma marca de lubrificantes) porque, ao que parece, se esqueceram de avisar os “filhos da fruta” (TBWA, para Santál) dos publicitários deste país que nem eles são o Saramago (aliás, já ninguém é o Saramago, para nosso mal), nem a publicidade é literatura.

Há nesta indústria a ideia – errada, para não variar – de que aquilo que fazemos é arte, e que como tal tem o dever de ser culturalmente relevante e absolutamente incompreensível.

Que não tem.

O único dever que tem é o de vender. E a partir daí pode ir morrer longe.

Ou dito de outra maneira – e a ver se vos consigo pôr a coisa em perspectiva: o Saramago escrevia sobre a condição humana, Deus e os heterónimos de Fernando Pessoa; nós vendemos detergentes. Perceberam? É que é mesmo tão simples quanto isto.

Nada me deixa mais em “estado de cheque” (EURO RSCG, para alguém a propósito de um cheque-oferta) que estar sentado a uma mesa cheia de publicitários a gozar com este e aquele trocadilho pelo simples facto de ser um trocadilho (independentemente de ser bom, mau ou assim-a-CIN). É assim uma espécie de pseudo-censura culturalo-criativa idiota e preconceituosa, que condena só porque condena, sem pensar por um segundo se isso é bom ou mau para a marca, se isso vende mais ou menos detergente (para que conste, normalmente vende mais).

E ainda por cima é cínica, porque quando é preciso “passar das palavras ao ATOS” (NOVA Publicidade, para Daewoo) todos trocadilhamos. E ainda por cima com gosto.

Posto o que – e só para terminar, que o texto para além de silly já vai longo – “borla aí” (NORMAJEAN, para Sapo) deixarmo-nos de coisas e ir beber o tal gin?

* Um enorme muito obrigado ao Ricardo Miranda pela sua inestimável ajuda com o imenso e consideravelmente arrumado acervo de trocadilhos. Para que conste: o Ricardo “é do carvalho” (BATES, para aguardente envelhecida em cascos de carvalho).

Artigos relacionados