Do racismo

Sim, eu sei. Vem aí a silly season, e agora, que temos sol, calor e gin tónico, apetece tanto falar de racismo como, sei lá, apanhar uma variante subsariana de Covid-19.

(Antes que fiquem a pensar nisso, a variante subsariana era só uma figura de estilo. Levemente racista, por sinal. Mas, adiante.)

Esta crónica (Artigo? Coluna? Nunca sei) começou a ser escrita aqui há uns meses, quando um conjunto de personalidades negras (e não só) se insurgiu contra a dobragem do filme “Soul”, da Disney Pixar, em português. Um filme animado sobre um universo cultural predominantemente negro (o jazz), com um cast 100% negro (na versão original) e que, por cá, levou com um elenco de vozes exclusivamente brancas, que é para aprender o que é o racismo sistémico.

“As vozes não têm cor”, disseram uns quantos, muito entendidos. “Agora, tudo é racismo”, disseram os do costume, todos ofendidos. “É óbvio que não foi por mal”, disseram outros, mais comedidos. E no entanto, as vozes têm cor (claramente), tudo o que exclui alguém de uma mesma cor da pele é, por definição, racismo (obviamente), e, quanto a não ter sido por mal (o que acredito), não torna o problema menor. Pelo contrário, faz dele um problema maior ainda, no sentido em que o racismo é tão inerente à nossa cultura (ou sistema) que nem sequer acontece por se querer, propositadamente, fazer mal a alguém – ele simplesmente acontece.

Ou, como dizia a Avenida Q, “todos somos um bocadinho racistas”.

Serve a introdução escrita com pezinhos de lã (que o tema não é simples), o exemplo quase famoso e a citação bem-disposta para atalhar caminho e dizer que, como é óbvio (também), existe racismo na publicidade.

E nem sequer estou a falar da indústria, mas tão-só da representação visual que essa indústria produz.

Vulgo, estou a falar dos anúncios.

E sem desatar para aqui a apontar dedos (até porque o problema é mais complicado do que isso), estou a falar das marcas que, com mais ou menos consciência disso, preferem actores brancos a negros para os seus anúncios, dos scripts que pedem, especificamente, que os anúncios sejam culturalmente representativos (no sentido em que, se ninguém pensar nisso, não o são) e, claro está, dos criativos que, durante anos (e anos, e anos), escreveram, nos seus briefings de produção, “homem, branco, meia-idade” (estou a falar de mim, para os mais distraídos), só pensando num casting negro (ou de outra cor qualquer) se houvesse uma razão específica para isso.

Sim, leram bem: só se houvesse uma razão específica para isso.

O que, pese embora inconsciente, era, obviamente, bastante racista. Mas assim foi (fui, fomos, etc.) durante anos até chegar a essa conclusão, e mais vale falar nisso do que fingir que não aconteceu.

Até porque esse é o grande problema do racismo sistémico: não parecer um problema.

Nosso, pelo menos.

Querem ver?

Pensem num anúncio. Qualquer. Que tenham visto recentemente, que gostem, que tenham feito – tanto faz. De que cor é o actor? Pois. Lá está.

Agora tentem lembrar-se do último anúncio que viram, na nossa televisão, em que o actor (ou actriz) era negro. Conseguem? Pois. Lá está.

Um dia, já mais velho e menos inconsciente, dei por mim a querer filmar um anúncio com um actor negro a fazer de neto, e uma actriz branca a fazer de (sua) avó. O que começou por dar um nó na minha cabeça, depois um nó na cabeça do cliente (que, honra lhe seja feita, me aprovou o casting), a seguir um nó na cabeça da equipa de produção e, desfeitos todos estes nós, um nó na cabeça de uma minoria muito barulhenta de consumidores, que se insurgiram contra aquilo a que chamaram “a normalização das famílias mistas”, entre outras barbaridades que tais.

Muitos nós, de facto, para uma coisa tão simples. Mas que os há, há.

E é por isso que aqui estou, em plena silly season, não a beber um gin tónico (ok, estou a beber um gin tónico), mas a falar do racismo na publicidade.

Que não resolve, em rigor, coisa nenhuma, para além da minha sede.

Mas, quem sabe, não é um princípio.

Tiago Viegas
Partner da The Hotel
tiago.viegas@thehotel.pt

Artigo publicado na edição n.º 299 de Junho de 2021

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