Do mundo global à cultura individual da empresa

Por Francisco Aires de Sousa, profissional de marketing

A mudança cultural aportada pela transformação digital, veio amplificar o desafio que constitui hoje a dinâmica interna das instituições e a transformação necessária para garantir uma cultura de empresa forte e agregadora.

O boom do teletrabalho na pandemia veio demonstrar valências e criar um ponto de não retorno. Agora que já se sabe como funciona e onde traz mais e menos resultados, muitas são as empresas que não querem voltar a ter escritórios gigantes e overheads proibitivos, mas que precisam de recriar uma cultura partilhada e vivida pelos colaboradores. Por outro lado, há muitas pessoas que não querem abdicar do novo modelo, ou pelo menos de terem a opção, que valorizam os muitos argumentos em prol do teletrabalho, e até a possibilidade de se afastar das grandes cidades e trabalhar online para qualquer parte do mundo. Esta liberdade de escolha de viver no campo com um salário urbano ou viver em Portugal e trabalhar para um dos mais valorizados mercados internacionais, é uma das formas de fazer um upgrade gigante na qualidade de vida.

Seja qual for o motivo, e conscientes de que os próprios modelos de planeamento, gestão e avaliação do trabalho precisam de uma revisão profunda para se adequarem a uma nova realidade, esta tendência está para ficar e crescer. As empresas não o podem ignorar ou achar que conseguem ter sucesso a remar contra a maré. Como em tudo, há que ver o lado da oportunidade e correr mais rápido para garantir o esperado, superar as expectativas e criar um novo contexto de proximidade e atractividade que assegurem um verdadeiro comprometimento das partes.

O afastamento físico dos colaboradores, facilitou a vida a quem gosta do trabalho, mas não gosta do chefe, abriu um mundo de oportunidades para milhões de profissionais que passam a poder mudar de trabalho e de empregador de um momento para o outro sem mudar de “escritório” e uma facilidade enorme no recrutamento de profissionais em áreas que o trabalho 100% digital seja viável. Por outro lado, este distanciamento é proporcional e bilateral, gera um sentimento de desprendimento, mas também cria uma sensação de solidão e vulnerabilidade, ou seja, os colaboradores sentem-se mais abertos para o mundo, mas também se sentem mais longe do porto seguro que a sua empresa representava.

Do lado das empresas, numa primeira fase, o trabalho digital apresentou-se como uma oportunidade infindável e sem senãos, acreditou-se no potencial que advinha da abertura ao mercado mundial e ao leque interminável de perfis para recrutar. Sistematizavam-se ao máximo as funções, permitindo a rotatividade de “pessoal qualificado” e aceitando o ciclo de renovação sistemática, recrutamento e formação, dispensando assim o investimento numa cultura de empresa forte. Com o tempo e aceleração da rotatividade, as remunerações foram subindo de patamar, as mais básicas referências de histórico foram-se perdendo e a dificuldade de integração multicultural de perfis laborais, foram mostrando fragilidades e acrescendo necessidades de investimento em formação.

A realidade interna das empresas é assim muito diferente da que alguma vez existiu, está desadequada e não favorece ninguém. O modelo tradicional das dinâmicas internas das empresas, por mais actual que nos pareça, cada vez mais é percepcionado e assumido como “cinzento”, autoritário e muito propenso ao descomprometimento progressivo, o famoso “quiet quitting”.

Não há empresas a salvo desta transformação, ela pode não entrar pela porta, nem pelo mercado específico, mas mais tarde ou cedo ela vai entrando, vai cativando os colaboradores e esclarecendo que é possível e desejável que a felicidade no trabalho faça parte da equação da empresa, que a individualidade seja real, que a preocupação com cada pessoa seja um compromisso de reciprocidade. Quando a adaptação da empresa à nova realidade é reativa e não por iniciativa, não há reconhecimento de mérito, de interesse, de preocupação e isso pode minar pela base a relação, a fidelização.

É urgente que todos tenhamos noção que é momento de parar, pensar e assumir em consciência quem quer assumir o risco de esperar, ou de “dar o salto” para se descobrir à luz do momento actual, definir qual é o seu perfil e posicionamento e o projecte em todos os pilares da estrutura.

Esta procura da identidade tem de ser plena, genuína e ambiciosa, projetada para envolver e estimular todos os stakeholders, mas antes de tudo, garantindo que representa pleno conforto e identificação da estrutura acionista e da alta gestão, ou seja, há que ter absoluta consciência que este processo só resultará se for uma redefinição de “código genético”.

Neste âmbito há que ter consciência que uma das mais estruturantes opções de cada empresa nos tempos que correm, é qual a centralidade das pessoas na estrutura e qual o modelo e dinâmica da comunidade interna.

Se até aqui era relevante a preocupação e valorização das pessoas, hoje, é uma definição por si só de “quem é a empresa” pois a crescente exigência dos colaboradores e a tendência introduzida pelas novas gerações, colocam a par com o salário e benefícios, as responsabilidades e atitudes da empresa, que passam assim a ser factores eliminatórios, antes de aceitarem um trabalho ou logo que consigam outro.

Sem um ADN verdadeiramente centrado nas pessoas, no seu equilíbrio e felicidade, na reciprocidade, na adequação à diversidade e onde se aposta na individualidade, não se consegue captar e reter pessoas que querem pensar, sentir, inovar, arriscar, e que assumam os projetos como seus.

Chegados aqui, sabemos que independentemente de qual, ter uma cultura de empresa que valorize a sua comunidade, a caracterize e diferencie, é fundamental.

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