Do determinismo
Importa referir que a presente crónica (ou coluna, ou lá o que isto é, nunca sei bem) é escrita poucos dias depois de o mundo (e, muito mais importante do que o mundo, o facebook dos meus amigos) ter descoberto o terço gigante da Joana Vasconcelos, criado por ocasião da celebração da visita a Fátima do Papa Francisco.
Ora aconteceu que a maioria dos meus amigos (e os amigos dos meus amigos, e até a maioria dos conhecidos dos amigos dos meus amigos) odiou a obra de tal forma que nem sequer a conseguiram qualificar como obra. Aliás, alguns – arriscaria até – odiaram-na mesmo antes de a ver, bastando para tal ouvir o nome da senhora artista (o que pelo menos é coerente, já que a maioria também não a consegue qualificar como artista).
Mas sim, estou a conjecturar, e não é bonito conjecturar. Vou continuar a minha história, portanto.
Dizia: eu, que não tenho nada contra a artista (gosto mais de umas coisas, menos de outras, acho que ela é preguiçosa noutras ainda mas, no geral, nutro considerável respeito e admiração pela sua obra), gostei. Bastante até. Arte Sacra (que no mais das vezes é ou velha ou feia ou ambas para xuxu) depurada, linhas simples, devidamente enquadrada, proporcionalmente equilibrada e com um toque (ma non troppo) de caricatura social? Pareceu-me lindamente, diria. E disse-o, de resto.
Curiosamente, foi precisamente aí que esta crónica se começou a escrever. Sozinha. Ou vá, pelo menos não pela minha mão.
Partilhada e publicada a opinião, não tardou muito a surgirem os incrédulos, aqueles que até gostam de mim e portanto atribuíram tal opinião a uma condição patológica a que chamaram, cientificamente, “ser do contra”. “És do contra”, que é como quem diz, não é por mal que dizes essa barbaridade, é porque és um chato rezingão e não consegues controlar isso. Pauvre de mim.
Depois chegaram os puristas, aqueles que dizem que aquilo não é arte pura, os que argumentam que ela não é artista mas sim designer (o que é, em si mesmo, extraordinário, porque retrata o designer como um artista falhado, que não teve nota suficiente para virar artista daqueles a sério e portanto teve que ir trabalhar para outros e marcas e cenas) e portanto aquilo não é arte mas… sei lá, um layout? Um folheto? Uma peça de estacionário? Todas as anteriores?
Quase ao mesmo tempo chegaram os beatos, os que se ofendem com o gasto, quando o que a igreja devia fazer era gastar dinheiro com os pobres (adoro que não tenham reparado no santuário onde a obra está implantada, mas tudo bem, quem precisa de coerência quando tem fé?)
A seguir vieram os simplistas – os que dizem que aquilo é só grande e mais nada, que aquilo é só branco e mais nada, que aquilo está só suspenso e mais nada. Assim uma espécie de “Less is more” é para meninos, no fundo.
Não tardaram a aparecer os adiantados mentais, aqueles que me mandaram estudar e ler e aprender, certos de que eu, pobre de espírito, besta inculta e pouco esclarecida, acaso tivesse mundo e estudado como devia (e como eles, obviamente) jamais gostaria de tamanha merda.
E no final, piéce de resistance, de entre todos os meus preferidos, chegaram os bricoleurs – aqueles que dizem “oh, eu com uma pistola de cola e cenas de plástico fazia igualzinho e ficava rico; fácil”. Juro: se pudesse, adoptava um bricoleur.
Inacreditavelmente (ou não, ou não), poucos foram aqueles que apenas não gostaram, sem ter a necessidade de me dizer que eu estava errado. Não gostaram porque acharam pouco original, porque acharam vazio de significado, não gostaram porque embirram com a senhora (tenho, de resto, o mais profundo respeito pelo ódios de estimação, assim sejam assumidos como tal), mas pronto, não gostaram apenas. Sem pôr em causa a artista, sem pôr em causa a obra, sem pôr em causa a minha opinião. Não concordaram, mas foi só isso.
Que é como quem diz, hoje queria falar-vos de uma prática muito irritante desta nossa área (não em exclusivo, mas também) que é o determinismo cultural – ou, em português mais simples, a chamada mania-de-que-eu-é-que-sei (e-vocês-são-todos-uns-azeiteiros).
Que estaria muito bem, se fôssemos todos artistas e andássemos a vender crenças, valores, verve e outras coisas afins que jorram metaforicamente (e não só) de nós.
Só que não, não é?
Há neste meio um determinismo cultural profundamente reducionista (e irritante, mas nos dias que correm quase tudo me irrita) que faz não só com que todos gostem do mesmo mas, pior do que isso, como que todos tendam a fazer igual.
A nossa vida é fazer anúncios e criar marcas, é falar em nome de outrem, não é propriamente expressar a nossa opinião mas antes fazer com que algo ou alguém venda mais da melhor maneira possível. O gosto? Só se for ao serviço de um cliente. Caso contrário, não é para aqui chamado.
Notem: eu também gosto muito do Kanye (foi o maior) e do Kendrick (é o maior), de ténis de marca, cores pasteis e aparadores nórdicos vintage. Mas isso não quer dizer que não haja qualidade e valor muito para lá do meu gosto. E passo, de resto, boa parte dos meus dias e tentar perceber e aprender com o valor dos angustiados Vampiros do Twilight, os mui irritantes One Direction (e o chato do Ed Sheeran) e a tentar perceber porque raio a minha filha vê o Manual de jogador para quase tudo (como eu vi o Saved by the Bell).
Não me entendam mal: é óbvio que o gosto tem lugar (e de destaque) no trabalho de criação; é óbvio que devemos tentar fazer as coisas mais bonitas do que feias; é óbvio que a funcionalidade e os objectivos de venda não podem sobrepor-se sem complementaridade quer a questões objectivas, de leitura e percepção, quer a questões subjectivas, de equilíbrio visual e outras mariquices que tais. Mas o gosto é uma coisa; e o MEU gosto é outra completamente diferente.
Há poucas coisas que me tiram tanto do sério como criativos, clientes, accounts, etc. que passem a vida a criar para si próprios, incapazes de perceber que nenhum deles é uma dona de casa com 45 anos e 3,2 filhos. Ainda que também me irritem aqueles que, no extremo oposto, são incapazes de perceber que uma dona de casa com 45 anos e 3,2 filhos não é propriamente um ser acéfalo, sem gosto – lá está – nem referências; mas isso dava todo uma outra crónica.
Para terminar, e só para (me) chatear (mas não muito, que não fui eu que paguei), no dia seguinte à pega de caras sobre o gosto-não-gosto do terço, apareceu nas redes uma obra brasileira que era, vá, igualzinha. Coincidência ou nem por isso? Indiferente, para esta (sublinhe-se: esta) discussão, no sentido em que não dá nenhuma razão a nenhum dos donos do gosto e da verdade. Mas dadas as semelhanças (mais ou menos incontornáveis), aposto que lhes deu um sorrisinho vencedor no canto da boca, não foi?
Texto: Tiago Viegas
Partner da The Hotel
Artigo publicado na edição n.º 250, de Maio de 2017, da revista Marketeer.