Debate: Vivemos uma crise de saúde mental?

Portugal é o segundo país da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico com maior consumo de antidepressivos, registando a toma de 124 doses diárias por mil habitantes, o que compara com a média de 66 doses diárias por mil habitantes nos países da OCDE. Só entre 2000 e 2020, o consumo deste tipo de fármacos subiu 304% no mercado nacional, onde 8 a 10% das pessoas estão diagnosticadas com depressão, com prevalência mais alta entre as mulheres. Já em termos de consumo de ansiolíticos, o País assume – há pelo menos 20 anos – a liderança em toda a OCDE.

Os números são preocupantes e reflectem uma verdadeira crise de saúde mental, um tema que, durante muitos anos, foi visto como tabu. Hoje, há maior abertura para debater o tema, há cada vez mais pessoas a procurar ajuda e, consequentemente, mais pessoas a serem diagnosticadas com problemas de saúde mental. As vendas no mercado farmacêutico confirmam-no, ou não estivessem categorias como os antidepressivos, estabilizadores de humor e antipsicóticos a crescer a dois dígitos, falando apenas dos medicamentos sujeitos a prescrição médica.

O tema foi a debate no mais recente pequeno-almoço debate do sector farmacêutico, organizado pela Marketeer. Para os participantes neste encontro, apesar dos avanços recentes, «em Portugal, a saúde mental continua a ser negligenciada e ainda não é vista como um problema crónico».

E lembram que, além dos antidepressivos e ansiolíticos de prescrição, há outros produtos farmacêuticos em crescimento no mercado que reflectem o estado da saúde mental dos portugueses e o aumento dos níveis de ansiedade e stress. No segmento OTC (over-the-counter, ou medicamentos de venda livre), o crescimento nota-se, por exemplo, na área gastrointestinal ou ao nível dos medicamentos para o sono (melatoninas), cujas vendas têm vindo a subir de forma significativa, sobretudo desde o aparecimento do formato de gomas.

«Tem tudo a ver com a qualidade de vida das pessoas. À medida que se vai deteriorando a qualidade de vida, aumentam os problemas de saúde mental, assim como os problemas gastrointestinais por via da alimentação pobre ou do stress. Não é por acaso que se diz que o intestino é o nosso segundo cérebro », sublinham os participantes. Isto explica também por que é que as áreas gastro, dos energizantes e dos medicamentos para o sono são três das principais áreas de comunicação das empresas farmacêuticas.

Manuel Barros (Generis), Paula Pereira da Silva (Jaba Recordati), Pedro Gouveia (Sanofi) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) foram os participantes no mais recente debate do sector, que decorreu no Hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

A IMPORTÂNCIA DA LITERACIA

O estado de saúde mental dos portugueses exige um plano de acção. Para os responsáveis inquiridos pela Marketeer, parte da solução passa por um maior investimento em literacia na saúde. E essa é uma responsabilidade das empresas farmacêuticas, mas que deve ser também partilhada por outras entidades que compõem o ecossistema, tais como a Apifarma – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a Associação Nacional das Farmácias (ANF), as diferentes Ordens e as próprias associações de doentes. Até porque, «literacia não é sobre retorno», mas antes sobre «investir no conhecimento da categoria e da patologia».

Actualmente, defendem os participantes, o que acontece é que são sobretudo as empresas farmacêuticas que estão a chamar a si próprias a responsabilidade de investir em acções e campanhas de literacia em saúde, específicas das áreas nas quais têm efectivamente produtos, o que acaba por limitar o espectro de influência. «A indústria tem feito um caminho nesse sentido, mas precisa de ajuda. Essas acções precisam de investimento », referem.

Nesse sentido, as associações de doentes, por exemplo, enquanto entidades que representam os pacientes de determinadas patologias, podem (e devem) assumir o papel de ligar várias empresas que podem trabalhar em conjunto no lançamento de campanhas de sensibilização e «falar de tudo aquilo que a indústria [farmacêutica] não pode». «Há bons casos de associações que o têm feito, mas há outras que poderiam fazer muito mais», explanam. Tal como as farmácias também «começam a ter um papel importante na literacia», em especial nas regiões mais isoladas do País onde «não há médico de família, nem centro de saúde».

Além disso, os responsáveis presentes no debate lamentam que não haja, em Portugal, uma verdadeira política de saúde de prevenção, que seria particularmente importante na área da saúde mental. E que «deveria começar pelas escolas», apregoam, até porque há cada vez mais jovens e adolescentes a enfrentar problemas de saúde mental.

A RETIRADA DE MEDICAMENTOS

Um dos temas do ano no sector da Saúde é o da ruptura de medicamentos. No entanto, um outro problema menos debatido é o da descontinuação de medicamentos. Em face do aumento dos custos em toda a cadeia de produção (desde as embalagens ao transporte) e da escassez de matérias-primas – problemas que se têm vindo a agudizar desde o início da guerra na Ucrânia e, agora, com a escalada do conflito entre Israel e o Hamas –, algumas empresas farmacêuticas têm tomado a decisão estratégica de retirar produtos do mercado português e estão a reduzir os seus portefólios. Isto porque consideram que o preço dos fármacos em Portugal – mais baixo em comparação com outros mercados europeus – torna inviável a comercialização de algumas referências. «Neste momento, pela política do medicamento, as multinacionais não vêem Portugal como um mercado prioritário para abastecer. É uma decisão puramente financeira.»

No início do ano, o Governo autorizou um aumento entre 2 e 5% dos preços dos medicamentos mais baratos (abaixo de 15 euros), numa medida que visou diminuir as situações de ruptura no mercado nacional. De acordo com os participantes no debate promovido pela Marketeer, este aumento «esteve longe de compensar o incremento de custos de produção para as empresas farmaceuticas».

Nesse sentido, «a indústria vai continuar a fazer alguma pressão junto do Infarmed para a revisão de uma série de preços de medicamentos que estão muito baixos. Começamos a ter muitos produtos a sair do mercado, que está a ficar carente de uma série de moléculas, porque não há margem [de lucro]. Ou os preços dos medicamentos são revistos e as empresas revêem a possibilidade de voltar ao mercado, ou então torna-se insustentável », defendem. E o Infarmed tem acedido a estes pedidos de revisão? «Com dificuldade, porque tem pouca capacidade de resposta», salientam os responsáveis, lembrando que estes processos podem arrastar-se durante anos.

Esta retirada em massa de algumas pequenas referências do mercado tem levado ao aumento da importação, via e-Commerce, nalgumas categorias de medicamentos. «Quando não há no mercado nacional, pagamos o preço que houver disponível lá fora. Aconteceu-nos isso com as máscaras [durante a pandemia de Covid-19] e vai acontecer o mesmo com os medicamentos a breve prazo. Estamos a correr o risco de os doentes não terem acesso a inovação», alertam os responsáveis.

Uma medida que poderia contribuir para contrariar a tendência de descontinuação de produtos seria acelerar o processo de entrada de novos produtos farmacêuticos no mercado, que pudessem constituir uma alternativa a essas referências que estão a ser retiradas. Ao dia de hoje, este processo é «demorado», podendo oscilar entre 18 e 24 meses – sendo que o prazo é agravado se envolver um processo de comparticipação. «Se aparece uma inovação a nível europeu, nós só podemos materializar em Portugal ao fim de dois anos, porque a regulamentação assim o obriga. Porque é que algo que hoje se pode fazer em seis meses demora 24?», questionam.

Outra solução para o problema poderá passar pelo estabelecimento de parcerias com outros países para a partilha de lotes de medicamentos. Já para reduzir os custos de produção, há algumas opções que estão a ser estudadas pelo sector, tal como a criação de embalagens menos custosas e mais sustentáveis (por exemplo, com QR Codes para que o paciente possa aceder à bula através do telemóvel). «Possivelmente este será o caminho, mas as legislações locais vão atrasar muito», referem os participantes.

EXPECTATIVAS PARA 2024

Quanto a previsões para o próximo ano, os responsáveis ouvidos pela Marketeer acreditam que o mercado farmacêutico vai ter um crescimento «muito inferior» ao que foi registado este ano e que o problema da ruptura de medicamentos se vai manter.

À volta da mesa acredita-se que o próximo ano ficará marcado sobretudo pelas mudanças anunciadas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que deverão avançar caso o Orçamento do Estado 2024 seja aprovado. Entre as medidas previstas no documento está, por exemplo, a criação de mais 32 Unidades Locais de Saúde (ULS) – que juntam os hospitais e os agrupamentos de centros de saúde da mesma área geográfica –, que poderá ter um impacto significativo ao nível dos cuidados de saúde primários. «Um médico de família, que não esteja habituado a fazer urgência, poderá ser chamado a ter que o fazer. E isso vai ter implicações em termos remuneratórios e numa série de outros factores», explicam os participantes.

Do ponto de vista do ecossistema da Saúde, o que podemos esperar é que vamos continuar a enfrentar muitas dificuldades nos hospitais e centros de saúde. «É uma reestruturação que precisamos de fazer e que se está a tentar fazer. Mas ainda vai piorar antes de começar a melhorar. Vamos continuar a ter muita procura pelos hospitais, porque as pessoas não têm acesso às consultas nem aos meios de diagnóstico», sublinham. «Vai ser um ano muito pautado pelas mudanças que vão ocorrer no SNS. O tempo de implementação das mesmas vai ser crucial», concluem.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Saúde”, publicado na edição de Novembro (n.º 328) da Marketeer.

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