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De quem é a Marca, realmente?
Texto de Opinião de Cláudia Ribau, docente no ISCA-Universidade de Aveiro, Investigadora da GOVCOPP e Paulo Parracho, Direção de Marketing (indústria, B2B).
Um dos desafios constantes que enfrentamos no Marketing é defender a importância da Gestão das Marcas. Dentro de uma empresa, o conceito do que é ‘melhor’ para a marca pode variar bastante de pessoa para pessoa e de departamento para departamento. Cada indivíduo e equipa tem responsabilidades e metas específicas a alcançar, e, quando se consideram as hierarquias organizacionais, bem como os diferentes níveis de poder e influência, essas dinâmicas acabam por moldar comportamentos e perspetivas, afetando, assim, a forma como a estratégia da marca é implementada.
Neste contexto, não existe uma definição única e unificada do conceito de ‘marca’. Há várias interpretações e, muitas vezes, a que prevalece não é a ‘melhor’, mas sim a mais influente. O que se torna irónico, e por vezes frustrante, é que a mesma pessoa pode alterar a sua compreensão de ‘marca’ dependendo de que ‘lado’ está.
Tomemos um exemplo: numa empresa, alguém focado nas margens de lucro pode defender a redução de custos, mesmo que isso comprometa a qualidade, para aumentar a rentabilidade. No entanto, quando essa mesma pessoa vai comprar um carro, como um Mercedes, provavelmente exigirá a mais alta qualidade – um motor genuíno Mercedes, ao invés de um substituto de outro fabricante. Esta dualidade evidencia a distância entre as expectativas pessoais enquanto consumidor e as decisões profissionais que afetam a marca.
Acreditamos que, independentemente da posição ou perspetiva de cada um, a definição de uma marca deveria ser consistente. Contudo, dentro das complexidades de uma organização, prioridades como ‘produção’, ‘lucros’ e ‘crescimento’ frequentemente sobrepõem-se a uma abordagem holística da Gestão da Marca. Muitos profissionais de marketing já devem ter sentido a frustração de ver decisões tomadas que entram em conflito com os valores da marca – algumas das quais se revelaram desastrosas e outras podem ter mesmo gerado um sucesso inesperado.
Mas de quem é, afinal, a marca?
Um exemplo que nos vem à memória remonta a 1985, quando a Coca-Cola decidiu alterar o seu sabor. Outro exemplo: a Jaguar, quando esta atualizou o seu logótipo. Antes de analisarmos esses casos, relembremos o que é uma marca, para que possamos compreender melhor as decisões destas empresas.
Uma marca é uma identidade única que representa uma empresa, produto ou serviço, e engloba o seu nome, logótipo, design, valores e reputação. Vai além dos elementos visuais ou verbais; trata-se da perceção, da conexão emocional e da experiência global que os consumidores associam a essa marca.
Refletindo sobre a Coca-Cola, não conseguimos deixar de nos perguntar: o que estariam a pensar e quem foi o responsável por uma decisão tão ousada? Como acontece com muitos livros de marketing e estudos de caso, analisamos e criticamos esta escolha com uma perspetiva atual. Mas, ao analisar com a visão que temos atualmente, não podemos deixar de pensar que talvez fosse mais simples lançar um segundo produto, como a Coca-Cola Zero, ao invés de modificar o produto principal.
No entanto, temos de reconhecer que não temos toda a informação necessária para julgar esta decisão. Havia outras variáveis em jogo que os forçaram a agir dessa forma? Nos anos 80, seria possível produzir dois produtos semelhantes em grande escala caso ambos tivessem sucesso? É fácil analisar com o conhecimento de hoje, mas o contexto da época pode ter apresentado desafios dos quais não temos noção.
Então, quem realmente detinha o poder sobre a Coca-Cola em 1985? Legalmente, os acionistas, que tinham o poder de eleger o Conselho de Administração. Contudo, os verdadeiros responsáveis por ‘tomar as decisões’ sobre a marca, em 1985, foram os consumidores. A sua influência foi tão forte que acabaram por reverter a maior decisão da história da empresa.
Isto mostra que a emoção, a perceção e a experiência são os alicerces fundamentais de uma marca e devem ser geridos com precisão.
Outra decisão audaciosa que ainda está a gerar repercussões, dado o seu carácter recente, é o caso da Jaguar que existe há cerca de 103 anos. O seu logótipo mais icónico representava um jaguar em pleno salto, com a palavra JAGUAR em letras maiúsculas.
Dando um ‘passo à frente’, para a nova era automóvel, a Jaguar fez uma mudança, não só no seu logótipo, mas também na sua filosofia de marca. A palavra Jaguar passou a ser escrita em letras minúsculas, espaçadas, com uma fonte arredondada e mais suave. O novo design dá à Jaguar uma imagem mais inclusiva, amigável e, com estas formas arredondadas, alguns até podem considerá-lo ‘clean’.
Contudo, ao compararmos com um jaguar real, seja na natureza ou num zoológico, a sensação é completamente contraditória. Sempre vimos a Jaguar como uma marca premium e exclusiva, associada a um determinado estatuto. O seu design e desempenho simbolizavam um animal selvagem: rápido, ágil e sempre pronto para atacar.
Claro que uma empresa é muito mais do que um logótipo, mas não deveria o logótipo ser uma afirmação e a essência de um produto ou organização? Um logótipo deve ter o poder de moldar a perceção.
Os anúncios recentes da Jaguar deixam margem para dúvidas. Se não soubéssemos que se trata da mesma marca, nunca imaginaríamos que o ‘novo’ Jaguar estava relacionado com o ‘antigo’ Jaguar. Os admiradores da marca viam-na como uma marca de sonho. E agora? Será que esta mudança vai causar impacto positivo na marca? O segmento-alvo vai estranhar? Veremos!
Onde se Encaixa o Marketing?
O proprietário de uma marca pode ser um consumidor, um acionista, um administrador. Mas, e onde se encontra o papel dos profissionais de Marketing?
Muitos profissionais de Marketing lutam para afirmar a sua influência na Gestão da Marca, pois acreditam numa causa. Deveriam ter mais autoridade neste processo? E como pode uma marca ser autêntica quando existem pessoas (decisores) que não partilham o mesmo objetivo?
Na era digital e das redes sociais, os consumidores têm um controlo muito maior na perceção da marca, através de críticas, influencers, conteúdos virais e outras plataformas. É fácil e rápido enaltecer ou destruir uma marca, o que exige que os profissionais de Marketing estejam sempre em alerta.
Neste processo de rebranding, deveriam os consumidores ter sempre a palavra final, ou as marcas, por vezes, deveriam avançar apesar da reação negativa do seu público-alvo?
Rebranding: Quando Fazer?
Na Gestão da Marca existe o que se denomina pelo rebranding, que muitas vezes é utilizado como ‘justificação’ para as alternações ‘mais radicais’ da marca. Acreditamos que este caminho só deve ser feito em duas situações: quando se trata apenas de uma pequena modernização da identidade, sem provocar um reposicionamento. Para modernizar, por exemplo, o logótipo, com formas mais arredondadas, associando-o a valores mais sustentáveis – os ODS, que devem ser prioridade para uma marca, já que 2030 está à porta e não podemos esquecer as novas gerações de consumidores, que são influenciadas por tendências de consumo, design, etc. Marcas ‘mais antigas’, como a pasta dentífrica Couto, passaram por essa evolução, revitalizando-se sem perder o contacto com o passado, mas com uma nova ‘imagem’, mais atual adaptada aos ‘novos’ consumidores. A outra situação ocorre quando há uma crise que exige uma rutura com o passado (como aconteceu com o BES e o Novo Banco, embora tenham mantido a cor verde, o que pode não ter sido a melhor decisão).
No caso da Coca-Cola, a variável produto do marketing-mix foi alterada, provavelmente sem avaliar adequadamente a reação do seu público-alvo.
No processo de rebranding, é fundamental manter a coerência do marketing-mix. Caso contrário, o processo falha. Deve ser bem pensado, sem romper com o passado, a menos que haja uma justificação para tal, mas sempre como uma renovação da marca e não um reposicionamento, a não ser que se justifique tal facto.
Claro que ‘os donos da marca’ querem lucros rápidos! Reduzem custos nos processos produtivos, muitas vezes penalizando a qualidade percebida da marca. Os profissionais de Marketing têm o papel de alertar, defender, discutir e, muitas vezes, até lutar contra certas medidas (arriscando a sua integridade enquanto profissionais e até a sua função na organização). Quantos já passaram por isso? Esta mentalidade por parte dos ‘decisores’ é demostrativa de que não existe noção do poder e do valor de uma marca. E depois, vem o ‘velho ditado’: construir uma marca demora muito tempo, destruir pode ser feito de um dia para o outro.
É caso para perguntar: É possível crescer e evoluir sem comprometer os valores e o passado da marca?