Das pessoas
Note-se, em jeito de prelúdio (ou prefácio, ou mesmo preâmbulo), que escrevo este texto acabadinho de perder um pitch (assim mesmo em inglês, que se há indústria provinciana é esta da criatividade) que muito gostaria de ter ganho, por um lado; e cheio de peru, borrego, bacalhau, cabrito e bolo-rei (entre outras iguarias natalícias igualmente calóricas, menos os fritos que me fazem azia), por outro.
De onde resulta, para além do aumento da minha tensão arterial, que estou mais sensível do que o habitual.
Que é como quem diz, hoje gostaria de vos falar – ao invés do meu costumeiro praguejar – da mais importante de todas as dimensões deste métier (eu avisei-vos do provincianismo): a das pessoas.
As minhas deambulações mentais por este tema remontam há alguns anos atrás – cerca de oito, se a memória me não falha -, mais precisamente ao dia em que, a propósito de uma reunião menos produtiva que animada, alguém terminou a dita (reunião) dizendo “estamos cá para trabalhar, não para fazer amigos”.
A minha primeira reacção, confesso – e mesmo percebendo que o senhor se estava a referir mais ao facto de o trabalho vir em primeiro lugar do que propriamente a dizer que não queria ser amigo deste ou daquele -, foi pensar qualquer coisa como “olha que grande energúmeno me saiu este”.
Hoje, passados tantos anos, vejo-me forçado a rever a minha reacção e dizer-vos que o dito senhor não era um energúmeno, mas antes um verdadeiro e rematado javardo.
Em primeiro lugar, porque não consigo – e acho que não vou conseguir nunca, pelo andar da carruagem – trabalhar com ou para alguém de quem não goste. Já tentei – mais que uma vez – e acabou sempre da mesma forma: mal.
Mal para o cliente (ou fornecedor, ou director, ou colaborador), porque o trabalho ficou sempre pior do que devia. E mal para mim, que, para além de ter feito mau trabalho – que é uma coisa que me chateia -, ainda fiquei irritado – que é uma coisa que me chateia muito mais.
E ainda que acredite que ter que trabalhar com ou para alguém não implica passar a levá-lo a almoçar lá em casa com a família todos os domingos, diria que é no mínimo saudável que exista algum nível de empatia e simpatia nas relações que temos com quem trabalhamos.
É – como se diz… ah, já sei: natural.
No sentido em que é natural que as pessoas se dêem e se preocupem umas com as outras.
Em segundo lugar, porque numa indústria como esta em que, mais do que qualquer outra coisa, o verdadeiro valor está não nos meios de produção mas nas pessoas (seja esse valor traduzível em talento, contactos, ou qualquer outra coisa entre os dois), não vou nunca conseguir perceber por que raio alguém coloca o trabalho num plano mais importante que o das pessoas e acha que isso é uma atitude inteligente e profissional.
Sejam colaboradores, fornecedores ou produtores afins, a verdade é que não gosto de pedir a ninguém para trabalhar mais do que era suposto. Agradeço muito quando o fazem e faço por que percebam o quanto aprecio o esforço adicional. Mas não consigo ficar aborrecido se alguém me diz que não. É uma questão de respeito pela – lá está – pessoa.
E o que é facto é que a experiência me tem ensinado que esta atitude faz com que todos o façam (entenda-se, trabalhar mais do que o suposto) com mais frequência e afinco – e, o que é melhor, com uma livre e espontânea vontade de ajudar.
Note-se, em jeito de conclusão (ou posfácio, ou parecido) que escrevo este texto estando mais sensível que o habitual. E que, por conseguinte, é natural que tenha uma menor predisposição para deambular pelo outro lado da história, que é quando eu ponho as pessoas à frente do trabalho, e em troca as pessoas pura e simplesmente deixam o trabalho para trás e o colocam por fazer à minha frente. Nessa altura eu afino (e quem me conhece sabe que, com o passar dos anos, vou afinando com uma voz mais grossa) e as coisas começam a correr mal.
Mas isso, bem vistas as coisas – e porque, afinal de contas, também eu sou uma pessoa, é… – como se diz… ah, já sei: natural.