Da indústria

Convém esclarecer, antes de continuar a ler (se acaso fosse essa a sua intenção, coisa que, em bom rigor, desaconselho vivamente), que este texto é escrito num período muito específico da minha vida profissional, mais precisamente aquele em que resolvi demitir-me da agência onde trabalhava e abrir a minha própria (versão de) agência, acima de tudo por achar que o sistema já (me) deu o que tinha a dar(-me).

De onde decorrem, entre outras várias, duas coisas: que como é óbvio vou passar os próximos dois ou três minutos armado em chico-esperto e a tentar convencer toda a gente que o sistema está velho e precisa de se reinventar; e que por baixo do meu nome, aí ao lado, onde antes se podia ler “director criativo da Brandia Central”, agora se lê coisa nenhuma (a agência própria não estava ainda criada à data de entrega deste texto).

O meu ponto é simples: esta indústria – a da criatividade – foi montada com base num pressuposto de linearidade no processo (com accounts a montante a produtores a jusante) que requeria tamanho de estrutura, pressuposto esse que foi válido durante muito tempo; mas que hoje pura e simplesmente deixou de fazer sentido.

E não deixou de fazer sentido (apenas) porque há menos dinheiro; deixou de fazer sentido porque deixou de garantir que o trabalho sai (mais) bem feito.

Que é como quem diz, onde antes eram precisos muitos ao longo de uma linha de montagem para fazer bem, hoje são precisos poucos e cada um para seu lado – para fazer provavelmente melhor.

O que dantes era trabalho para 50 durante seis meses em três ou quatro ateliers e estúdios diferentes, é hoje trabalho de uma noite para dois ou três ex-adolescentes ainda borbulhosos com um iPhone, um iPad e mais três ou quatro programas de computador (dois deles pirateados, provavelmente).

Acham que estou a exagerar?

Então vão até ao YouTube e vejam agências de duas pessoas a fazerem mais e melhor trabalho que agências de 150, de forma mais ágil, mais competitiva e com muito melhor serviço. (Aliás, o que é melhor serviço, três accounts e um director de contas que escrevem status reports e atendem telefones como ninguém, ou poder falar directamente com o (director) criativo responsável pelo trabalho e discutir ideias?)

“Ora, isso resolve-se reduzindo”, dirá a malta das agências grandes. “Mas vocês já reduziram”, responderei eu.

“E ainda que tenha sido por causa da crise e não porque tenham aprendido alguma coisa, a verdade é que não resolveram porra nenhuma para além do vosso EBITDA, que em vez de cair muito, cai só muito menos um bocadinho”, acrescentarei, armado em chico-esperto.

E, modéstia à parte, terei (alguma) razão.

“Ah e tal e experiência e network e segurança e capacidade de resposta”, dirão em contra-ataque.

Ao que eu, tentando não ofender ninguém, respirarei fundo e direi calmamente, como se estivesse a falar com um director-geral que ainda não percebeu bem o que lhe vai acontecer: “A ver se nos entendemos: o ponto é a qualidade do trabalho. Na ausência de bom trabalho, nada mais interessa; na presença de bom trabalho, nada mais interessa.

Se esta estrutura deixou de o garantir, então esta estrutura não serve.

Se não serve, manda-se fora.

Se se manda fora, sobram as pessoas.

E, com as pessoas, tem que se inventar um novo modelo.”

Não é muito, eu sei.

Mas é um princípio.

Neste caso, o meu.

Pelo menos.

Texto de Tiago Viegas

Fotografia de Paulo Alexandrino

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