“Chapéus, há muitos”. Especialistas, nem tanto
Por Marco Gouveia, consultor e formador de Marketing Digital, head of Digital Marketing no Pestana Hotel Group e Google Regional trainer
“Numa altura em que se fala na verdade de cada um, é sempre bom lembrarmo-nos de apurar os factos”. Esta é parte de uma publicação que fiz no LinkedIn, há alguns dias, e teve um alcance de mais de 15 mil pessoas, com quase 300 interacções. Constatei ser um tema caro – no seu duplo sentido – a um número infindável de pessoas, pelo que creio ser merecedor de uma maior reflexão colectiva. A nossa contemporaneidade é marcada pelo que designam de “a geração mais instruída de sempre”, com mais de 384 mil estudantes matriculados no ensino superior para o ano lectivo actual (1). Porém, em plena era da informação, deparamo-nos, simultaneamente, com um discurso perigoso cada vez mais proliferado: o dos autoproclamados “gurus”. Afinal, quem são eles e o que os torna especialistas magnos de alguma coisa?
O famigerado termo “guru” não é de agora, apesar de a sua aplicação se ter disseminado por esferas temáticas diversas nas últimas décadas. Segundo o dicionário online Infopédia, a palavra provém do sânscrito “guru”, traduzido para o português para “pessoa grave”, o que começou por ser aplicado aos líderes espirituais, particularmente do hinduísmo (2) . Porém, depressa o termo se estendeu à designação de sujeitos de grande influência numa dada área e, infelizmente, essas associações não costumam indiciar algo confiável. No Marketing Digital, particularmente, é aflitivo o recurso desenfreado e, tantas vezes, enganador deste termo, sendo o LinkedIn riquíssimo em autoproclamados “especialistas” nesta ou noutras áreas (logo à partida, não lhe causa alguma suspeita a própria necessidade de incluir “especialista” no campo do cargo profissional…?).
Será, pois, útil, ponderarmos sobre os factores que nos capacitarão a determinar, nós próprios, que somos especialistas – principalmente pela responsabilidade que as possíveis consequências resultantes disso visam. Partamos, por exemplo, do saber empírico, decorrente da própria experiência profissional, como justificação da especialização. É claro que existem casos de especialistas que adquiriram este estatuto sem completar um percurso académico formal (Bill Gates e Travis Kalanick desistiram da universidade e ergueram “sozinhos” os seus impérios). Eu mesmo comecei a trabalhar no Digital autodidacticamente, muito antes de ele existir enquanto disciplina académica e área profissional estabelecida; aprendi imenso sozinho, por tentativa e erro. Porém, antes de termos, já, muitas provas dadas, oficializar uma especialização perante os outros é mais desafiante, e há sempre o risco de a mera prática se esgotar e necessitarmos de uma matriz epistemológica mais holística e completa, para podermos responder a novos desafios.
Existe, também, a posição baseada na questão dos certificados e/ou conhecimento formalmente adquirido. Na mesma medida, seria abusivo admitir que um curso ou uma certificação (ou mesmo vários) farão de alguém, automaticamente, um especialista, dado que saber a teoria não se traduz necessariamente em capacidades de execução (note-se, de resto, o que acontece com a maioria dos estudantes universitários que, ao chegar ao mercado laboral, precisa de aprender quase tudo de raiz). Uma matriz de conhecimento sólida e estruturada é muito importante, mas não é tudo: a prática e aplicação dos conhecimentos têm um peso essencial nessa determinação. A respeito disso, ressalve-se, de resto, que a reputação e o reconhecimento das instituições ou formadores que atribuem essas certificações são frequentemente consideradas, na acessão da qualidade do respectivo ensino (o que pesará não só para os formandos como para os empregadores).
Porém, pior do que tudo isto, para mim, são os nossos “gurus”. Mentir às pessoas para proveito próprio com dados forjados, narrativas e curriculum vitae desenhados de modo a manipular quem quer investir na sua formação afigura-se algo desprezível, mas é muito comum, nomeadamente nesta área. Recentemente, mostrei, num vídeo no YouTube, como se pode mentir quanto aos resultados obtidos, no Google Analytics. Foi reconfortante verificar ter ajudado a desmascarar uns quantos truques, mas a minha reacção foi, sobretudo, de preocupação, pela quantidade de pessoas que afirmaram, elas mesmas, estar familiarizadas com este tipo de situação. A máscara dos “gurus” dissimulados não tarda, geralmente, a cair, mas a desonestidade causa danos (e custos).
É evidente que as especializações são muito relativas: é impossível generalizar e criar um modelo de validação universal, pois estaríamos a cair numa injustiça tremenda. No entanto, uma ideia sobressai de tudo isto: o estatuto de especialista provirá, principalmente, de algo que ultrapassa a nossa mera autopercepção. Mesmo reconhecendo o teor cada vez menos linear da educação, é urgente desmistificar o que querem representar estes “gurus” e estar atento aos “Vasquinhos” da vida real: os que dizem às tias que já são doutores, quando a história é outra…
(1) Diário de Notícias: “Há quase mais 14 mil inscritos no superior este ano. Alunos estrangeiros aumentaram 15%”. Acedido a 6 de outubro de 2020. Disponível em https://www.dn.pt/pais/ha-quase-mais-14-mil-inscritos-no-superior-este-ano-alunos-estrangeiros-aumentaram-15-12137935.html
(2) Infopédia: “Guru | Definição ou significado de Guru”. Acedido a 6 de outubro de 2020. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/Guru